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Mostrando postagens de janeiro, 2025

ALMA DO DESERTO (2024) Dir. Mónica Taboada-Tapia

Texto de Carmela Fialho O filme Queer Alma do Deserto da diretora Mónica Taboada-Tapia constrói a sua narrativa na trajetória da trans indígena Georgina Epiayú na luta para colocar o nome de mulher no seu documento de identidade. A diretora realiza um documentário de personagem, de cunho observacional, tentando posicionar a câmera como um instrumento de registro do cotidiano dessa mulher, sem que a mulher interaja diretamente com a câmera. Sem a documentação definitiva com o nome feminino, Georgina, com o documento provisório, não tem direito a receber os benefícios do governo, nem pode votar. Assim, Alma do Deserto aborda não só o preconceito em relação a essa mulher trans, mas também uma de suas mais cruéis consequências, a invisibilidade. Georgina é oriunda do povo Wayúu, do clã Epiayú e vai à Uribia, capital indígena da Colômbia, para tentar resolver a questão da identidade definitiva, mas não obtem sucesso em suas investidas. A fotografia calcada no cotidiano árduo e de resistên...

TRILHA SONORA PARA UM GOLPE DE ESTADO (2024) Dir. Johan Grimonprez

Texto por Marco Fialho O documentário  Trilha Sonora para um Golpe de Estado , dirigido pelo belga Johan Grimonprez, entrelaça a política internacional durante a Guerra Fria (em especial os conflitos entre os países na ONU), o jazz dos negros dos Estados Unidos e a independência do Congo Belga. O desafio é grande e o diretor realiza um filme complexo quanto ao resultado. Nem mesmo os seus 150 minutos tornaram essa obra fácil de ser digerida, muito pelo contrário, a concepção de Grimonprez fazem o filme por demais cansativo. O que mais me incomodou em Trilha Sonora para um Golpe de Estado foi a sua montagem frenética e clipada, que embaralha o tema, com depoimentos entrecruzados que dificultam o entendimento de certas situações, fora uma avalanche de informações que perpassam o filme. O tema histórico, o do sofrido processo de independência Congo Belga se mistura com imagens e depoimentos de músicos consagrados de jazz dos Estados Unidos, como Louis (Satchmo) Armstrong, Dizzy Gilles...

A GAROTA DA AGULHA (2024) Dir. Magnus von Horn

Texto por Marco Fialho A Garota da Agulha é um drama que investe numa narrativa que contorna habilmente o filme de terror, que se utiliza de uma premissa que a história humana produz e produziu momentos que colocam em xeque o que podemos definir o ser humano. Assim, a obra do dinamarquês Magnus von Horn trabalha no próprio limite da humanidade.  Mas antes de entrarmos efetivamente na trama de A Garota da Agulha precisamos dizer antes de mais nada o quanto nossa experiência como espectador nesse filme decorre de uma situação histórica específica, pois sem se pensar no seu contexto pouco se compreenderá o alcance dessa obra tão dura, filmada toda em preto e branco, o que só faz agravar tudo o que vemos em tela. Mais precisamente, Magnus von Horn fala de uma nova sociedade que emerge em um período pós-guerra, aqui a Primeira Guerra Mundial (1914-19) e da deformidade não só física quanto moral que ela provoca nos tais seres humanos. Esses períodos específicos produzem aberrações, aliás...

SOL DE INVERNO (2024) Dir. Hiroshi Okuyama

Texto por Marco Fialho Boa parte do cinema japonês contemporâneo é marcado pela singeleza. Mas felizmente, esse cinema não vive só de Kore-Eda. Sol de Inverno , é o segunda longa do jovem diretor de 28 anos, Hiroshi Okuyama (que inclusive já colaborou com Kore-Eda numa série), que mergulha na alma de três personagens profundamente humanos e triviais: Arakawa (Sosuke Ikematsu),um professor de patinação artística no gelo; a aluna Sakura (Kiara Nakanishi); e o aluno Takuya (Keitatsu Koshiyama). A beleza dessa obra está exatamente nesse detalhe, revelar a interioridade de pessoas que poderíamos encontrar na esquina de nossa casa.  Sol de Inverno foi exibido na mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes de 2024, e despertou o interesse de dois críticos e cinéfilos brasileiros em adquirir os direitos de exibição no Brasil. Chico Fireman e Michel Simões montaram uma distribuidora, a Michiko Filmes, impulsionados pela beleza de mostrar esse filme ao público brasileiro, que dificilment...

CONCLAVE (2024) Dir. Edward Berger

Texto por Marco Fialho Para quem vê o mundo papal apenas como instância religiosa,  Conclave pode parecer algo surpreendente. Mas para quem sabe que o Vaticano é também um Estado eivado de interesses políticos e econômicos, o filme pode parecer até banal e sem grandes surpresas. E convenhamos, Habemos Papam , do Nanni Moretti, realizado em 2011, é bem mais interessante sobre os bastidores dos cardeais, mais engraçado e crítico do que Conclave , esse bem moralista por sinal. Não que o filme de Edward Berger não tenha seus méritos. Particularmente, gosto do elenco experiente que dá conta do recado e leva o filme nas costas. Stanley Tucci, John Lithgow, Sergio Castellitto, e especial, as excelentes interpretações contidas e precisas de Isabelle Rossellini e Ralph Fiennes. O roteiro de Peter Straughan, baseado no livro homônimo de Robert Harris, inclusive se calca muito nos atores, nas intrigas palacianas e nos jogos políticos subterrâneos.  A fotografia sombria de Stéphane Fontai...

A VERDADEIRA DOR (2024) Dir. Jesse Eisenberg

Texto por Marco Fialho O ator e diretor Jesse Eisenberg sabe como surpreender em  A Verdadeira Dor . Se as primeiras cenas sugerem uma comédia no estilo de Se Beber Não Case... , felizmente, o que vem depois, segue outros rumos. Temos sim um típico road movie , onde a experiência da viagem é inesperada e reveladora. Não que haja grandes descobertas, as reviravoltas são mais interiores e esse é um mérito do filme de Eisenberg, virar a chave da extroversão para introversão na hora certa. O roteiro do próprio Eisenberg é um achado, pois a maior qualidade desse filme está na maneira como os personagens vão se transformando na estrada e a direção não perde tempo com preâmbulos ao começar a história na embarque dos personagens. Benji  (um Keiran Culkin irritante de bom) e David (um Jesse Eisenberg bem contido) são oriundos de uma família judaica e não se veem há muito tempo, mas mesmo assim decidem fazer uma viagem improvável à Polônia com um grupo que concentra outros judeus e conv...

ANORA (2024) Dir. Sean Baker

Texto por Marco Fialho É cada vez mais frequente no mundo cinematográfico as reações polarizadas e desproporcionais tanto do público quanto da crítica em relação aos filmes lançados no circuito exibidor. Seria uma consequência da proliferação do fenômeno Letterbox, onde comentários fugidios se acumulam numa espécie de empilhamento de opiniões apressadas, um tipo de mercado onde cada um grita mais alto para poder ser ouvido? Pode ser, mas esses comportamentos não deixam de ser guiados pelos engajamentos peremptórios típicos das redes sociais comandadas pelos chamadas big techs . Muitas vezes em busca de visualizações e likes momentâneos logo descartados na primeira esquina das publicações. Fiz essa introdução acima não gratuitamente, mas para começar o texto sobre Anora , o último trabalho de Sean Baker, que vem recebendo textos os mais exaltados tanto para aplaudi-lo quanto para denegri-lo. Por isso, propomos ponderar mais, racionalizar a discussão para não polariza-la ainda mais....

FLOW (2024) Dir. Gints Zilbalodis

Texto por Marco Fialho  Flow é uma das animações mais incríveis que assisti nos últimos anos. A sua dinâmica narrativa é digna de ser ressaltada, pois durante seus 85 minutos não há um diálogo sequer, ou melhor dizendo, não tem diálogos falados, pois há muita comunicação entre os personagens. Os animais se enfrentam, se ajudam e fazem tudo para ficar juntos durante um tsunami que destrói tudo, habitat, família e qualquer referência anterior de 5 bichinhos: um gato, um cachorro, uma capivara, um pássaro-secretário e um lêmure.  Mesmo ser ter qualquer presença humana, o filme remete às relações que precisamos estabelecer com o mundo e o outro para sobreviver e tentar dar algum sentido em nossa aventura pela Terra. Flow é impregnado por um tipo de magia, mesmo que várias situações sejam limites, a direção de Gints Zilbalodis sempre reserva ao público uma experiência sensorial, muitas vezes ao levar a cena para flutuações de corpos pelo espaço ou pela água, como se o terror estiv...

CHICO BENTO E A GOIABEIRA MARAVIÓSA (2024) Dir. Fernando Fraiha

Texto de Marco Fialho O prêmio fofura do ano de 2025 já tem dono e afirmo isso em janeiro de 2025, não em novembro ou dezembro. Chico Bento e a Goiabeira Maraviósa tem carisma de sobra, que elenco e que privilégio para as crianças brasileiras poderem assistir a uma belezura que é esse filme de Fernando Fraiha. A obra conta com um roteiro original, baseado no universo dos quadrinhos de Maurício de Souza. Todos os elementos aqui são acertadíssimo e adequados às crianças, mas sem chama-las de idiotas ou bocós, como muitas animações insistem em fazer. E digo mais, o filme passeia por idéias críticas em relação ao crescimento desenfreado e regado pela ambição econômica de setores conservadores e egoístas.  Chico Bento e a Goiabeira Maraviósa consegue tanto conscientizar quanto brincar com a própria linguagem do cinema. É por isso uma ótima entrada para que crianças aprendam mais sobre narrativas cinematográficas. Logo na primeira cena, Chico Bento quebra a quarta parede para falar diret...

AQUI (2024) Dir. Robert Zemeckis

Texto de Marco Fialho Robert Zemeckis é um cineasta que gosta de jogar com a ideia de diacronia. Assim fez nas três sequências de De Volta Para o Futuro nos anos 1980 e em Forrest Gump (1994). Essa perspectiva do tempo o atrai, não resta dúvida, mas Aqui (2024) é por sua vez o seu experimento mais frustrante com o tempo. Não que não seja bom ou interessante, ou até mesmo divertido, terno e agradável de ver. Na mesma linha, com a mesma ideia, André Novais Oliveira fez um filme genial, o média-metragem Quando Aqui , também exibido em 2024. Mas porque a estratégia do tempo em Aqui não soa tão forte e envolvente como nos exemplos acima? O que Zemeckis planeja para o filme é algo profundamente engessado. Colocar a câmera em uma única perspectiva, sem jamais a deslocar, por milênios e milhões de anos, desde os dinossauros até à Covid-19, não deixa de ser uma ideia criativa em um primeiro momento, que a princípio soa estimulante, revela-se algo cansativo e até artificial.  O que mais fic...

KASA BRANCA (2024) Dir. Luciano Vidigal

Texto por Marco Fialho Kasa Branca , dirigido por Luciano Vidigal, pode ser visto, em um sentido amplo, uma obra de afetos. Afeto do diretor em relação à história narrada, aos personagens e ao público, além dos personagens entre si. Digo isso pensando o quanto tudo o que vemos e ouvimos nos afeta. O filme é sobre o afeto que precisa existir nas relações interpessoais, tendo o cuidado em torno de uma avó a centralidade da trama e dos conflitos.  Entretanto, não se pode esquecer que essas relações estão presentes em um território, mais precisamente um periférico situado na Chatuba, na Baixada Fluminense, onde o trem serve de referência e uma forma de aproximar aquele espaço de outros, alguns bastante longes de lá. É curioso também reparar como o som e a imagem iniciais são justamente os de um trem, onde logo lemos Central do Brasil, seu destino final. Não sei se houve um ato premeditado da direção ao começar o enredo evocando um nome tão simbólico para o nosso cinema contemporâneo, q...

LUIZ MELODIA - NO CORAÇÃO DO BRASIL (2024) Dir. Alessandra Dorgan

Texto por Marco Fialho A poesia transborda de Luiz Melodia - No Coração do Brasil , documentário sentimental e afetuoso de Alessandra Dorgan. Na verdade, tudo em Melodia emana poesia: seu corpo, a voz marcante, a letra inteligente, provocativa e a melodia desconcertante que encanta desde o início da canção. A diretora parte desses aspectos para desenhar não uma biografia descritiva e insossa, mas uma radiografia viva, pensada a partir da alma do compositor e da energia da voz impecável do Melodia cantor.  Alessandra Dorgan realizou uma pesquisa precisa, não para exaurir a imagem de Luiz Melodia e sim o suficiente para poder sorver a sua essência. Nesse ponto, o documentário possui uma exatidão exemplar ao não buscar referendar Melodia pelas opiniões alheias, embora isso se confirme quando ouvimos Gal, Bethânia, Itamar Assumpção, Zezé Motta e Elza Soares entoarem suas canções como um louvor à beleza de uma música impossível de ser enquadrada em ritmos. Esse é um importante viés de L...

BABY (2024) Dir. Marcelo Caetano

Texto por Marco Fialho Baby dramaturgicamente se escora em uma mistura de romance LGBT com um intenso drama social. Faz lembrar filmes como Pixote e o teatro de Plínio Marcos. O conceito estético que o diretor Marcelo Caetano propõe perambula lá pelo final dos anos 1970 e início dos 1980, em especial pela maneira como os personagens marginalizados são construídos. Por isso Baby não deixa de ser um exercício interessante de roteiro e direção.  O filme se guia por meio das ações dos personagens Baby (também chamado de Wellington), numa interpretação magnética do jovem ator João Pedro Mariano e sua relação com Ronaldo, interpretado por Ricardo Teodoro. O roteiro de Marcelo Caetano, coescrito por Gabriel Domingues, aposta numa narrativa onde os diálogos são curtos e precisos, nunca repetitivos à imagem, sempre a alimentando com sugestionamentos e olhares. A fotografia, a cargo do experiente Pedro Sotero e Joana Luz, sustenta imagens fortes vindas das interpretações muitas vezes duras e...

BABYGIRL (2024) Dir. Halina Reijn

Texto por Marco Fialho  A diretora Halina Reijn filma Babygirl como um típico filme de amor entre adolescentes. O estranhamento que sentimos é provocado pelo fato da personagem Romy (Nicole Kidman) ser uma CEO de uma grande empresa de sucesso no ramo do ecommerce enquanto o seu par romântico está saindo da adolescência.  Se na teoria Romy deveria ser uma mulher madura e Samuel, o jovem estagiário, o imaturo, na prática ocorre o inverso. Ela é a adolescente da relação. Essa premissa poderia até ser interessante caso Romy fosse uma tirana como chefe, o que não é verdade. Mesmo porque praticamente não vemos Romy exercendo efetivamente o trabalho como CEO. Não há uma preocupação do roteiro em marcar Romy como uma líder autoritária, ao invés disso, ela aparenta ser bem quista pelos subalternos. Fica pouco factível ver essa mulher tão supostamente empoderada não só ser como querer ser dominada pelo estagiário inexperiente. E a dominação aqui não é só sexual, é mais um tipo de domin...

NOSFERATU (2024) Dir. Robert Eggers

Texto por Marco Fialho Tem diretores que se colocam diante de um desafio extremo, tal como Robert Eggers faz ao lançar uma refilmagem do clássico Nosferatu (1922), do genial Friedrich Wilhelm Murnau. Queria aproveitar e até promover um desafio aos diretores: façam refilmagem de filme fracassado, sem grande importância, porque refazer filmes de sucesso e bem-sucedidos é em certos aspectos bastante decepcionante. Não que o filme de Eggers seja ruim, apenas não tem a inspiração e o brilho da versão de Murnau. Nem cito O Nosferatu (1979) de Werner Werzog já que o diálogo que Eggers busca visivelmente é com a versão de 1922.  O Nosferatu de Eggers esbarra em excessos desnecessários, são tantos planos filmados para serem intactos e belos que tudo soa com certo artificialismo, o enredo se encaminha para um segundo plano, tal é o esmero pelo visual, por uma fotografia que impressiona a ponto de nos tirar do filme. Em certo momento fiquei observando a imagem, sem me importar com o que estav...