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Mostrando postagens de agosto, 2023

DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS (1976) Dir. Bruno Barreto

Quando o público tinha um encontro marcado com o nosso cinema Texto de Marco Fialho O ano é 2023, o filme, "Dona Flor e seus Dois Maridos", de 1976, em 35mm. O impacto temporal é  imenso, mas o emocional é maior. Depois de quase 50 anos, é natural que a obra fale muito sobre um mundo bastante diferente do nosso, mas o encanto está lá reluzente a nos seduzir. O diretor Bruno Barreto realizou um filme que ainda hoje é uma das maiores bilheterias do cinema brasileiro, com quase 11 milhões de espectadores, ultrapassado recentemente em valores absolutos por "Minha mãe é uma peça 3" (2019) "Tropa de Elite 2" (2010).  A primeira impressão que se pode tirar de "Dona Flor e seus Dois Maridos" é de seu frescor narrativo, do quanto prazeroso esse filme se revela aos nossos olhos e corpos. E os motivos são vários. Primeiro, a história cativante de Jorge Amado, temperado por uma brasilidade baiana sedutora. Segundo, pelos protagonistas maravilhosos escalados:

RETRATOS FANTASMAS (2023) Dir. Kleber Mendonça Filho

Tudo que é sólido se desmancha no ar Texto de Marco Fialho "De certa forma, o passado é muito mais real, ou enfim, mais estável, mais resiliente que o presente. O presente escorrega e some como areia entre os dedos, adquirindo peso material apenas em sua lembrança."                           Andrei Tarkóvski "Retratos fantasmas" é um filme-poema que envolve muitas camadas a serem consideradas. Kleber Mendonça Filho realiza um filme delicado, tocante e fundamentalmente muito pessoal. Há um risco eminente quando o diretor se emaranha de tal forma à narrativa e à própria trama, mas Kleber, de maneira comovente, se sai muito bem quando resvala em um humor fino, elegante e inteligente. Não vale muito comparar esse filme com os que vieram antes, talvez só na perspectiva de que muitos fatos presentes em seus trabalhos partiram de alguma referência concreta, em especial, o apartamento de Setúbal.    Desde a primeira cena Kleber Mendonça Filho já explicita que "Retratos

PARA ONDE VOAM AS FEITICEIRAS (2020) Dir. Eliane Caffé, Carla Caffé e Beto Amaral

A performance como estratégia de resistência e diálogo Texto de Marco Fialho "Para onde voam as feiticeiras" é o novo e instigante trabalho da premiada diretora paulista Eliane Caffé, que desta vez divide a direção com a irmã Carla Caffé e Beto Amaral. O filme transita entre o documentário e a performance ao reunir a voz de sete artistas engajados em coletivos LGBTQIA+, pretos, indígenas e sem teto, que ocupam um pequeno espaço de uma rua do Centro de São Paulo para criar performances provocadoras em relação aos transeuntes. A todo instante, tanto a cidade quanto a equipe do filme se colocam como personagem, aparecendo em diversas cenas. A equipe sistematicamente pode ser vista ora segurando a câmera ora o boom do som, assim como os diretores são flagrados constantemente em conversas com os personagens, assim como a própria população, que vai passando e se surpreendendo e reagindo. Esse efeito surpresa, das pessoas passarem e serem pegas desprevenidas com aquela ocupação públ

EAMI (2023) Dir. Paz Encina

A poesia da floresta e do mundo por Paz Encina      Texto de Marco Fialho Tem cinema que para existir precisa redefinir o que comumente se entende ou se espera por cinema, é o caso dos filmes da realizadora paraguaia Paz Encina. Seu novo trabalho, "EAMI" (na língua do povo Ayoreo que dizer floresta e mundo), se constrói a partir de uma busca por uma linguagem que expresse seu objeto, aqui no caso, a cultura ancestral dos povos indígenas que vivem isolados na região do chaco paraguaio. A diretora abre mão dos diálogos ao preferir incorporar à narrativa a voz over desses personagens perseguidos por um sistema opressor e desigual, mas reparem como a voz monocórdica da narração remete a uma canção de ninar, daquelas que ficam na memória pela musicalidade marcante e insistente. O filme recebeu a láurea máxima no prestigiado Festival de Cinema de Roterdã. "EAMI" é todo falado na língua dos Ayoreo, que chega aos nossos ouvidos como música, através de vozes em off oriundas

ELA MORA LOGO ALI (2022) Dir. Fabiano Barros e Rafael Rogante

O poder da cultura e do livro Texto de Marco Fialho Tem filmes que transbordam emoção pelas bordas da tela de cinema e por isso são inspiradores. "Ela mora logo ali" representa exemplarmente esse sentimento. O filme da dupla Fabiano Barros e Rafael Rogante é um achado por extrair uma história das águas profundas e límpidas de Porto Velho (RO). A protagonista é uma mulher preta, analfabeta (Agrael de Jesus) e que vende banana frita nos sinais para alimentar a irmã e o filho com deficiência. A força e a potência dessa personagem são evidentes desde as primeiras imagens e como é importante ver a região norte na tela e produzida igualmente por eles, que conhecem as dores e as alegrias desse lugar.  "Ela mora logo ali" possui diversas camadas que fazem dele algo realmente mágico. São muitas representatividades juntas: da mulher preta, da mãe atípica, da mãe dedicada, da mãe pobre, analfabeta e sobretudo lutadora, a da importância da leitura para a transformação social, d

LUIS FERNANDO VERÍSSIMO, O FILME (2023) Dir. Luzimar Stricher

Entre a simplicidade e lucidez  Texto de Marco Fialho O que mais chama a atenção no documentário "Luis Fernando Veríssimo, o filme" é o amor que a diretora Luzimar Stricher demonstra ao protagonista, o quanto lentamente ela vai o tomando para si, numa pulsação tal que irradia da tela. Fica nítida a impressão que há uma admiração latente e verdadeira vinda da tela para a plateia. O que mais me agradou na direção de Luzimar é o fato dela ter muitos caminhos a trilhar dada a multiplicidade que Luis Fernando Veríssimo oferece, mas ela não cede a nenhuma invencionice e consegue traçar um painel dinâmico, amplo, divertido, esclarecedor, mas sobretudo sóbrio da personalidade desse genial e muito tímido escritor, chargista, desenhista e cronista brasileiro.  Luis Fernando Veríssimo enfrentou muitos desafios na carreira, inclusive a maior de todas: o fato e o peso de ser filho do maior escritor do Rio Grande do Sul, Érico Veríssimo. Como ser escritor com essa sombra gigantesca a recai

ANHANGABAÚ (2023) Dir. Lufe Bollini

Uma montagem que desorganiza a potência da luta pelo território Texto de Marco Fialho "Anhangabaú" é um documentário sobre a luta pelo território em um contexto onde tudo já está dominado pelos poderosos. O filme de Lufe Bollini abarca territórios diversos em conflito, como um prédio em ocupação, uma terra indígena guarani perto da capital e a briga de Zé Celso por um parque no Bexiga. É uma São Paulo múltipla, urbana e contraditória. Há um desejo que exala do filme de uma ampla transgressão, com corpos diversos e indígenas brigando por terra e dignidade. A montagem elíptica do filme, realizada pelo próprio diretor, não prima por seguir nenhuma noção de ordenamento. Não há nenhum didatismo na costura das sequências, saímos do ambiente da floresta para o da ocupação sem nenhuma explicação prévia ou contextualização, o que às vezes gera uma sensação de estranhamento e confusão. A câmera à mão em muitas cenas também salienta uma liberdade que parece inspirada nos personagens e q

O GRANDE BUSTER KEATON: UMA CELEBRAÇÃO (2018) Dir. Peter Bogdanovich

Keaton merecia mais Texto de Marco Fialho Peter Bogdanovich ficou conhecido por diversas obras de ficção, algumas sensacionais como "A última sessão de cinema (1971), "No tempo do cinema" (1976), Lua de papel" (1973) e "Essa pequena é uma parada" (1972), reparem que citei obras dos anos 1970, tempo áureo da chamada Nova Hollywood, movimento que revolucionou a maior indústria do cinema por meio de propostas narrativas inusitadas e criativas, na qual o diretor esteve frontalmente engajado. Mas paralelamente à carreira de diretor de ficções, Bogdanovich realizou pesquisas e estudos sobre a história do cinema e seus trabalhos nesse campo são igualmente valorizados, em filmes que abordaram diretores como John Ford, Orson Welles e estrelas como Natalie Wood.  Portanto a realização do documentário "O grande Buster Keaton: uma celebração", sobre o excepcional ator e diretor que começou a carreira lá no chamado cinema mudo, não chega a ser uma surpresa. A

DA PORTA PRA FORA (2023) Dir. Thiago Foresti

Os absurdos da pandemia Texto de Marco Fialho "Da porta pra fora" narra a tragédia brasileira à época da pandemia da Covid-19, nos anos de 2020 e 2021, mas o faz por meio dos motoboys, em especial três deles (dois homens e uma mulher),  que trabalham a partir dos aplicativos de celular do tipo dos  ifood , aqui com o nome modificado sugestivamente para Tifoodi (para evitar processos jurídicos). O documentário acerta ao incluir na história a conturbada vida política do país governado por Bolsonaro e nos faz lembrar da negativa do então presidente em comprar a vacina, o que levou o país a mais de 700 mil mortos pelo Coronavírus. A narrativa do filme alterna depoimentos realizados tanto por voz over quanto com a câmera frontal aos personagens. Thiago Foresti também se utiliza com habilidade da inserção das mensagens de whatsApp (meio de comunicação dos motoboys) diretamente na tela. Os três protagonistas vão se revezando ao contar e gravar suas experiências no calor da hora das

MEMÓRIAS DA CHUVA (2022) Dir. Wolney Oliveira

A caminho de Bacurau Texto de Marco Fialho "Memórias da chuva", filme cearense de Wolney Oliveira, de certa maneira simboliza muito o que é a história do povo nordestino: uma eterna luta contra os desmandos e autoritarismo dos políticos que sempre pensam primeiro em seus interesses econômicos e jamais no bem-estar do coletivo. Nessa história, a cidade Jaguaribara inteira é destruída para a construção da Barragem Castanhão, que no processo se revelaria o quanto ela viria beneficiar apenas as indústrias locais e o agronegócio, ignorando a dor lancinante do abandono de toda uma população que ali morava.  O filme de Wolney, não tem bem um protagonista, já que vários moradores participam como personagens, mesmo que a Irmã Bernadete tenha algum tempo a mais na tela. A impressão que fica é que a cidade de Jaguaribara é a maior personagem do documentário. Toda a história dessa cidade vai sendo devastada pelo poder oficial, deixando uma tristeza profunda nos moradores, que são desloca

ALÉM DO TEMPO (2022) Dir. Theu Boermans

Os percursos de uma dor  Texto de Marco Fialho No Brasil não chegam muitos filmes holandeses, "Além do tempo", do diretor Theu Boermans, é um dos que conseguiram a proeza de furar a bolha e ser lançado, mesmo que em uma única sessão. Infelizmente, o nosso atual circuito não está moleza, sorte para uns poucos e azar para a maioria dos filmes que ficam à margem. Mas os poucos que forem assistir a esse filme holandês podem até sair um pouco triste e com uma lágrima furtiva no rosto, porém não vão sair chateados com o filme.  "Além do tempo" trata de um tema não só doloroso como também impossível de ser cicatrizado, embora o diretor Theu Boermans demonstre engenhosidade narrativa para não deixar seu filme descambar para os gestos exagerados ou até mesmo do melodrama. O filme é muito equilibrado em seus elementos, se pensarmos na montagem, na fotografia, no som, nas interpretações, nos movimentos de câmera, nos enquadramentos, nada sai dos eixos durante as quase duas hor

RHEINGOLD (2022) Dir. Faith Akin

O ouro e o rapper Texto de Marco Fialho O diretor alemão Faith Akin é desses diretores que prezam por histórias mirabolantes ("Soul Kitchen", 2009; "Em pedaços", 2017; e "O bar luva dourada", 2019), algumas delas até esbarram na realidade, como é o caso de "Rheingold", que narra a história do rapper de sucesso, Xatar, em seu percurso atravessado por idas e vindas, inclusive pelo mundo do crime. Faith conta essa história como se fosse a gravação de um videoclipe, com imagens fortes do mundo do crime, mas também enaltecendo a riqueza que envolve tanto o meio musical quanto o do crime. O título Rheingold é inspirado na ópera "Das Rheingold" (O ouro do Reno) de Richard Wagner, que trata da ambição do homem pelo ouro, o poder e a riqueza que ele traz. Faith remete diretamente à opera wagneriana justamente na cena subaquática final que remete às donzelas do Reno, cena plasticamente muito bonita, na qual o diretor faz uso de drones e câmeras G

O ALECRIM E O SONHO (2021) Dir. Valério Fonseca

Um personagem que sonha em vida Texto de Marco Fialho Diante tantos filmes internacionais marqueteiros e alavancados por grandiosos processos publicitários, "O alecrim e o sonho" é uma dessas gratas surpresas que só o cinema independente brasileiro pode nos brindar. Já faz muito tempo que no Brasil a qualidade de um filme está associada ao público que o vai assistir, mas precisamos buscar outras referências para analisar uma obra cinematográfica que não seja apenas  o da bilheteria, ainda mais que esse será mais um a tentar competir em franca desvantagem comercial, daí a importância de haver a coragem e a luta de Cavi Borges também como um distribuidor na Livre Filmes.  O diretor Valério Fonseca realiza em "O alecrim e o sonho" um filme surpreendente, com pouquíssimos diálogos e sustentado por interpretações surpreendentes, em especial, Valdinéia Soriano (uma atriz de grande vigor interpretativo) e Fernando Teixeira (um ator excepcional), um protagonista soberbo, qu

ASTEROID CITY (2023) Dir. Wes Anderson

Uma parábola satírica do sonho americano Texto de Marco Fialho "Asteroid City" é uma parábola satírica dos Estados Unidos dos anos 1950, bem ao estilo do diretor Wes Anderson. Toda a concepção visual do filme lembra muito uma animação, tal a limpidez e as cores utilizadas por Anderson. A obra guarda essa concepção bem própria de Anderson, onde a imagem sempre esbarra na fantasia e em um mundo que flerta com o ilusório. Tudo é exageradamente simétrico, aliás, bem ao tradicional gosto do diretor. Apesar de todo o cuidado visual e estilístico de sempre, "Asteroid City" fica essencialmente abaixo de outras obras do diretor, como "A ilha dos cachorros" (2018), "O grande Hotel Budapeste" (2014), "Moonrise Kingdom" (2012), apenas para nos atermos a algumas. Estruturalmente, o filme se divide entre os bastidores (em preto e branco) da peça Asteroid City e a sua própria encenação (em cores), e esse é o maior problema do filme, a discrepância que