Texto por Marco Fialho
Kasa Branca, dirigido por Luciano Vidigal, pode ser visto, em um sentido amplo, uma obra de afetos. Afeto do diretor em relação à história narrada, aos personagens e ao público, além dos personagens entre si. Digo isso pensando o quanto tudo o que vemos e ouvimos nos afeta. O filme é sobre o afeto que precisa existir nas relações interpessoais, tendo o cuidado em torno de uma avó a centralidade da trama e dos conflitos.
Entretanto, não se pode esquecer que essas relações estão presentes em um território, mais precisamente um periférico situado na Chatuba, na Baixada Fluminense, onde o trem serve de referência e uma forma de aproximar aquele espaço de outros, alguns bastante longes de lá. É curioso também reparar como o som e a imagem iniciais são justamente os de um trem, onde logo lemos Central do Brasil, seu destino final. Não sei se houve um ato premeditado da direção ao começar o enredo evocando um nome tão simbólico para o nosso cinema contemporâneo, que remete frontalmente ao famoso filme de Walter Salles. Independente de ser um ato intencional o que vale aqui é o intuitivo.
O mais encantador em Kasa Branca é o quanto cada personagem se faz crível. E o mesmo pode ser dito dos cenários. Pode parecer óbvio fazer com que tudo na tela seja tão verdadeiro, mas não é. Há um esforço imenso de construção de detalhes nos figurinos talhados por um realismo, em que o trabalho da preparadora de elenco é mais do que relevante. O filme é muito mais dedicado a um grupo de amigos, embora o protagonismo fique com Dé (o excelente Big Jaum), o adolescente que cuida com muito carinho de Almerinda, sua avó (Teca Pereira, que sem falar uma palavra sequer durante o filme, faz uma interpretação impressionante), que sofre do terrível Mal de Alzheimer. Inclusive, os coadjuvantes são um importante ponto de apoio para o desenvolvimento da história, com eles as subtramas crescem e se conectam à principal, em um diálogo dramatúrgico interessante. Os problemas de todos se assemelham com os que acontecem em qualquer outra periferia brasileira.
Porém, o que o filme traz de específico é que o faz grande, a afeição pelos personagens que parecem saídos da vida real, com seus cotidianos de dificuldades, com os maus atendimentos dos hospitais; a ausência de pensão paterna; a fila da Previdência Social; a dura e o acharque do policial; a desestruturação das famílias com a ausência dos pais; entre tantos elementos que acendem a fagulha da vida em Kasa Branca. E a fotografia, a cargo de Arthur Sherman, enche a tela de cores vívidas da Chatuba, além de revelar noites repletas de brilho e encantamento. Há uma boa dose de orgulho que o filme emana pelo território. As dificuldades não amaldiçoam o cotidiano, nem o aviltam, porque os personagens se integram ali com imensa vontade de viver. A alegria e a tristeza, como também é na vida, se comungam e convivem na história. A montagem de André Sampaio cria a sensação de que todos os personagens entram e saem de cena sempre na hora certa, o que faz a narrativa fluir com o ritmo da vida como ela é.
A amizade dos amigos Dé, Martins (Ramon Francisco), Adrianim (Diego Francisco), Luan (Kibba) e Talita (Gi Fernandes) é o maior trunfo de Kasa Branca. Roberta Rodrigues se destaca em um pequeno papel, o de mãe de um dos meninos, mas que desperta o interesse não declarado de um deles. É um deleite observar como esse corpo de atores flutua pela história, com grande naturalidade e leveza, um trabalho de preparação de elenco fenomenal de Fátima Domingues e do próprio diretor. A câmera de Luciano Vidigal se esforça para dar protagonismo para os atores, acertando em enquadramentos (inclusive em ângulos zenitais arriscados) e não exagerando nos movimentos, deixando um grande palco para os desempenhos dos atores. Tem poucas cenas em que a câmera se insinua para ser protagonista, como a do sexo a três na caixa d'água, onde ela se assanha, talvez inspirada na própria excitação dos personagens.
Assim como as obras da produtora mineira Filmes de Plástico, Kasa Branca privilegia a inserção das ações do cotidiano em sua narrativa, trazendo o mesmo efeito de leveza e uma sensação que a janela do cinema funciona como uma janela de nossa casa, onde observamos a vida das pessoas majoritariamente negras que vivem na periferia da sociedade. A valorização de uma ideia de coletividade, de solidariedade e amizade genuína está presente no filme e talvez seja um dos pontos mais tocantes dessa obra de aparente simplicidade. E quem teria coragem de negar que a simplicidade é um das maiores armas da sofisticação e do bom gosto artístico. Kasa Branca é uma obra de imenso fôlego por saber dar vida a quem os donos do poder não querem nem saber. Luciano Vidigal resgata para o cinema a maravilha que é viver a vida, seja lá qual lugar se viva, atualizando e subvertendo a famosa e luxuosa expressão francesa joie de vivre.
Filmaço!!! Filme que mexeu demais comigo, muito por conta da minha identificação com o personagem Dé.
ResponderExcluirInteressante você citar o trem com destino à Central do Brasil. Belíssima reflexão.