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Mostrando postagens de janeiro, 2023

PROPRIEDADE (2022) Dir. Daniel Bandeira

A luta de classes com fratura exposta  Texto de Marco Fialho "Propriedade" (filme exibido na mostra Panorama do Festival de Berlim) pode até não ter uma radicalidade cinematográfica, mas não se pode negar a sua radicalidade temática. Poucos filmes são tão cientes da sua mensagem e se esforçam tanto por realizá-la com tamanha força e competência. Daniel Bandeira, seu diretor, soube construir um thriller exemplar, ele consegue tocar a história para frente a cada cena, aprofundando a tensão a tal ponto que em certo momento aceitamos isso como inerente ao seu processo de filmagem. Ouso dizer que "Propriedade" tem um quê de "Bacurau", de Kleber Mendonça Filho, em especial, a força de unir uma comunidade contra os desmandos geracionais e históricos, embora vá além na concretude da mensagem. Lembra ainda "Bacurau" em uma necessidade imperiosa de comunicar uma ideia de se dar um basta na exploração, de que não se aceitará mais o autoritarismo dos poderos

O CANTO DAS AMAPOLAS (2023) Dir. Paula Gaitan

A presença pela dessincronia  Texto de Marco Fialho Imagens surgem em flash na tela. Tentamos apreender o que vemos, mas tudo passa muito rápido pelos nossos olhos, parecem imagens de um apartamento. Ficamos desnorteados, sem prumo. Esse será o nosso estado até o final do filme, mesmo depois que duas vozes em off começam a conversar sobre uma mulher do passado. Pelo que tudo indica ela não está mais entre nós. Nunca temos a certeza do que acontecerá na próxima cena e esse mistério é emcatador. Ficaremos até o final curiosos por ver alguma imagem dessa conversa, porém isso não vai ocorrer até o fim. Ficamos à deriva e este é a melhor definição para nós espectadores neste filme. "O Canto das amapolas" se guia por uma dessincronia persistente causadora de um estranhamento poético, que exige uma concentração permanente do espectador para acompanhar esse embate entre imagem da solidão e a narração oral.       Rapidamente reconhecemos que uma das vozes é de Paula Gaitan. Depois des

TÁR (2022) Direção Todd Field

Texto de Marco Fialho Pelo o que o próprio título sugere, "Tár" é um filme de personagem, aqui no caso, de uma personagem. Nele, acompanhamos o sucesso e a derrocada da carreira da maestra Lydia Tár. Um filme sobre estar no poder e os desafios de como se manter nele. Mais uma interpretação inquestionável de Cate Blanchett, que deve levar a sua 8ª indicação ao Oscar e quem sabe a terceira e merecida para sua galeria de troféus.  O que chama a atenção para a construção narrativa ficcional de "Tár" é como o diretor Todd Field (de "Pecados Íntimos" 2006 e 'Entre quatro paredes" 2001) surpreende ao costurar a longa trama desta obra, começando por narrar os fatos que levarão a maestra à ruína. Todos os atos de Tár soam como corriqueiros, como se fizessem parte da vida cotidiana de um maestro, inclusive aos poucos vamos entendendo como funciona os bastidores de uma filarmônica, porque Field vai lentamente montando um quebra-cabeça complexo, em que os sub

AS LINHAS DA MINHA MÃO" (2023) Dir. João Dumans

"As linhas da minha mão" é um lindo enigma que João Dumans nos oferta ao propor um jogo dialógico, mediado pela câmera, com a atriz e performer Viviane de Cassia Ferreira. Em sete blocos vemos a atriz fabular aleatoriamente para a câmera. Não casualmente, logo no início, um amigo propõe um desafio a partir de indagações nietzschianas extraídas do livro "O Crepúsculo dos ídolos". As perguntas eram: você anda à frente como pastor, exceção ou desertor? A atriz se posiciona como desertora, como aquela que não se adequa ao social. Depois outras provocações são feitas: você como atriz você é genuína? Você é alguém que olha ou que se deixa olhar? A sua fórmula da felicidade é um sim, um não ou uma linha reta?  Reproduzo aqui essas indagações porque elas são fundamentais para pensar o filme e suas estratégias. Do quanto essas imprecisões são incorporadas ao filme e o torna encantador. Esse método escolhido pelo diretor cria uma atmosfera entre atriz e diretor até que em det

ALEGRIA É A PROVA DOS NOVE (2023) Dir. Helena Ignez

"Se você quer uma vida, aprenda a roubar" Texto de Marco Fialho "Alegria é a prova dos nove" é mais um manifesto feminista potente de Helena Ignez, a mais jovem cineasta do Brasil. O filme é uma ode libertária e iconoclasta de uma mulher que acredita no viver e na felicidade plena da mulher.  Logo no início é dito uma frase do poeta francês Arthur Rimbaud "o verdadeiro mundo não está aqui" que para mim sintetiza o espírito desse trabalho único de Ignez. Essa frase ecoa a necessidade de se viver a utopia, esse não lugar que nós humanos podemos e precisamos inventar para nós mesmos. Daí nasce a personagem Jarda Ícone, uma espécie de influencer digital que dá cursos estimulando (literalmente) as mulheres na descoberta e na prática sistemática do orgasmo e da masturbação.  Helena Ignez nos prova que a juventude está para além dos números do calendário, ela é uma iluminação como já emulou o documentário biográfico "A mulher de luz própria", dirigido p

COBERTURA 26ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES

PROPRIEDADE Dir. Daniel Bandeira COTAÇÃO: 9 Impressão: "Propriedade" (filme que será exibido na mostra Panorama do Festival de Berlim) pode até não ter uma radicalidade cinematográfica, mas não se pode negar a sua radicalidade temática. Poucos filmes são tão cientes da sua mensagem e se esforçam tanto por realizá-la com tamanha força e competência. Daniel Bandeira, seu diretor, soube construir um thriller exemplar, ele consegue tocar a história para frente a cada cena, aprofundando a tensão a tal ponto que em certo momento aceitamos isso como inerente ao seu processo de filmagem. Ouso dizer que "Propriedade" tem um quê de "Bacurau", de Kleber Mendonça Filho, em especial, a força de unir uma comunidade contra os desmandos geracionais e históricos, embora vá além na concretude da mensagem. Lembra ainda "Bacurau" em uma necessidade imperiosa de comunicar uma ideia de se dar um basta na exploração, de que não se aceitará mais o autoritarismo dos pode

IL BUCO (2021) Direção Michelangelo Frammartino

A imersão no plano do céu, da terra e das profundezas  Texto de Marco Fialho "Il Buco", dirigido pelo cineasta Michelangelo Frammartino, é antes de tudo uma proposta diferente de se experienciar uma obra cinematográfica. Se o espectador chega desprevenido para fruir esse filme fatalmente irá rejeitá-lo. O filme não tem um diálogo sequer, não tem nenhum personagem que se possa tradicionalmente chamá-lo de protagonista e tem muitos minutos tendo um fundo de caverna como imagem preponderante. Mas o que Frammartino descortina em "Il Buco" é uma aula de cinema, em especial, de como se filmar o tempo. Sim, o tempo contem um grau de abstração desconcertante e somente grandes cineastas tiveram a audácia de retratá-lo. Já disse certa vez o mestre russo Andrei Tarkovski que o cinema é a arte do tempo e "Il Buco" se coloca justamente nesse patamar, o de trazer à baila uma discussão acerca da natureza do tempo.  É importante atentar como Frammartino constrói "Il

OS FABELMANS (2022) Direção de Steven Spielberg

O cinema como reinvenção da vida  Texto de Marco Fialho Desde a primeira cena, "Os Fabelmans" deixa claro que o cinema é o maior personagem do filme. Spielberg inspirando-se em sua autobiografia realiza uma obra sensível, familiar, que pode ser vista como uma ode ao cinema. É como se Spielberg (lembrando que Tony Kushner divide o roteiro com ele) fosse montando não só um quebra-cabeça da sua relação com o cinema, mas também como o cinema o foi escolhendo. No decorrer do texto lembrarei desses momentos, que foram os que mais me impactaram no filme.   Primeiro, quando muito pequeno, sentiu o medo do gigantismo do cinema, depois o impulso irremediável de reproduzir a cena que mais o impactou no filme. "Os Fabelmans" narra a descoberta dessa paixão pelo ato de filmar, e vai mais fundo ainda quando descobre o poder intrínseco das imagens filmadas na vida de sua família, inclusive o poder de destruição que elas podem atingir. No momento mais importante da trama, no maior