Texto por Marco Fialho
É cada vez mais frequente no mundo cinematográfico as reações polarizadas e desproporcionais tanto do público quanto da crítica em relação aos filmes lançados no circuito exibidor. Seria uma consequência da proliferação do fenômeno Letterbox, onde comentários fugidios se acumulam numa espécie de empilhamento de opiniões apressadas, um tipo de mercado onde cada um grita mais alto para poder ser ouvido? Pode ser, mas esses comportamentos não deixam de ser guiados pelos engajamentos peremptórios típicos das redes sociais comandadas pelos chamadas big techs. Muitas vezes em busca de visualizações e likes momentâneos logo descartados na primeira esquina das publicações.
Fiz essa introdução acima não gratuitamente, mas para começar o texto sobre Anora, o último trabalho de Sean Baker, que vem recebendo textos os mais exaltados tanto para aplaudi-lo quanto para denegri-lo. Por isso, propomos ponderar mais, racionalizar a discussão para não polariza-la ainda mais. Anora tem sim em sua composição méritos, assim como possui pontos bem complicados.
Primeiro ponto a pensar sobre Anora é o quanto ele dialoga com os outros filmes do diretor, algo que é interessante por criar um diálogo para além do filme em questão e que permitem situar Anora em uma análise mais digressiva. O tema da Cinderela já estava explicitamente presente em Tangerine (2015), cuja protagonista, uma mulher trans, se chamava Sin-Dee-Rella e também trabalhava como prostituta em meio a uma cidade onde a riqueza capitalista se vislumbrava ostensiva com suas luzes e brilhos. A existência da riqueza não quer dizer que todos usufruam dela e isso o filme trabalha bem, assim como mostrava como a sociedade tratava esse corpo trans, visivelmente desviante do padrão estabelecido. E vale lembrar ainda o seu filme mais interessante, Projeto Flórida (2017), que possuía referência ao mundo mágico da Disneylândia, que contradizia frontalmente com a vida de privações de uma mãe e sua filha, ambas moradoras em um apartamento no condomínio ao lado desse grande empreendimento de sonhos. Um filme que ao final descobrimos que a história era um grande extracampo, pois o que não vimos no filme seria o que o mundo capitalista vende como um passaporte para a felicidade eterna.
Anora se situa bem nesse contexto da obra de Sean Baker, não a contradiz, pelo contrário, continua a dialogar fortemente com esses temas que lhe são caros. Pelos excessos, Anora se aproxima muito de Tangerine e eles realmente incomodam, por trazer uma gritaria e uma histeria por demais over, embora haja uma justificativa crível, pelo menos para a explosão de Anora (ou Ani, como a personagem prefere). Mas a histeria não é só dela, também está no pai do jovem inconsequente Ivan. A história é bem simples, Anora é uma mulher que vive como prostituta em um clube, dançando e tentando seduzir clientes ricos. Numa noite, ela se envolve com Ivan (Marcos Eydelshteyn, com uma atuação irregular, nem sempre muito segura de si), filho de um mafioso russo e eles se casam no entusiasmo. O pai do rapaz e dois comparsas dele vão até o casal para desfazer o casamento. A mãe de Ivan depois também entra na história para ajudar a desfazer o tal casório precipitado.
A grosso modo, Anora trata do desmoronamento de um sonho, de como ele rapidamente se transforma em pesadelo para Anora. Apesar da grande velocidade da narrativa, dos diálogos rápidos e entremeado de cortes bruscos, o filme impõe seu ritmo feroz. Baker não deixa nada acalmar, tudo é na correria, tanto à narrativa quanto à história. Se esse pode ser o maior mérito do filme para um público apressado, acaba sendo o seu calcanhar de Aquiles, já que fica preso em demasiado em seu esforço em dar conta da sua própria alucinação narrativa e se perde por não se aprofundar nas discussões que levanta, como o da prostituição e seu significado social, nem tampouco permite um respiro ao espectador que é arrastado por um tsumani cinematográfico. A câmera fica a mercê da loucura dos personagens, que se agarram, se socam e se agridem de maneira ostensiva. A energia pesa e o som beira o insuportável.
O maior problema de Anora é descambar para a esperteza, de cair em uma batalha de quem é mais sagaz do que o outro. Anora conseguirá extrair dinheiro dos milionários russo ou sairá com a mão abanando e voltando para a prostituição? A discussão moral soa aqui muito rasteira e o filme vai se desfazendo por si mesmo, em especial pelas estratégias de roteiro que tende levar o filme em um tom que faz lembrar as estratégias narrativas de um reality show. Mas qual é a discussão que o filme quer realmente fazer? A história passeia por dois grandes centros capitalistas, Nova York e Los Angeles, e de certo modo trabalha com a espetacularização da prostituição nessas cidades, expressões de uma visão mercantilizada do sistema.
Baker perde a oportunidade de por os dedos em algumas feridas, como sutilmente fez em Projeto Flórida. Baker se perde em subordinar em demasia os desejos da personagem Ani a um plano de sair da prostituição por meio das vias convencionais e na de acreditar em demasia nos sentimentos de Ivan, um mero bon vivant bem comum nesse meio em que Ani trabalha. A felicidade de Ani está sistematicamente nas mãos de um homem, primeiro com Ivan e depois com Igor (Yura Borisov), mesmo que de maneira conflituosa, afinal ele é tão pobre quanto ela, mais um subjugado e dependente da sanha capitalista, além de ser um trabalhador igualmente do submundo. O pecado maior de Baker é sustentar a história de Anora sempre por essa dependência masculina, como se outras saídas não existissem.
Por isso o personagem de Igor é importante na trama (inclusive Borisov foi indicado ao Oscar de Coadjuvante por sua interpretação), um tipo de capanga escalado pelo chefe da máfia para "vigiar" Anora, e que acaba apaixonado por ela. Igor ainda pode ser visto como um perfil masculino clássico, do tipo protetor, o que também é bastante complicado. A câmera de Baker vai se direcionando e sendo seduzida por ele, para que possamos enxergar sua transformação no enredo. Essas operações soam mecânicas, além de forçadas, e por mais que as interpretações até ganhem fôlego no decorrer da narrativa, a história em si decai para o óbvio e novamente em um novo conto de fadas, sendo agora um subalterno o pivô de uma nova perspectiva amorosa. Esse mecanismo de transferência de afetos é visível e previsível durante a projeção. De apaixonada pelo menino ela vira e chave e fica caída pelo capanga do mafioso.
Anora é isso, até chega a ser um bom entretenimento, embora em certo momento seja tomado pela previsibilidade e careça de elementos de direção ora mais sutis ora de roteiro mais criativos. A personagem Ani pedia mais, sua ferocidade inicial mais ainda. Sean Baker aposta tudo na narrativa, numa maneira ágil de contar uma história, mas um filme é sempre mais do que uma história bem filmada. E o filme só não vai ralo abaixo porque os atores seguram a maior parte da trama, com destaque para a carismática atriz Mikey Madison e a boa presença de Yura Borisov. A cena final, no carro entre os dois, pode ser interpretada de muitas maneiras, embora ela mostre a abertamente a dor de uma mulher solitária em busca de afeto, ou seria de submissão a um novo homem? Sean Baker pode oferecer mais do que isso, quem sabe na próxima obra ele resgate a sutileza que mostrou no belíssimo Projeto Flórida, e traga à luz, um viés mais crítico do que apenas reproduzir mecanicamente uma história pelo prazer de narrar e se esquecer de que o que está sendo narrado é tão importante quanto o como está sendo narrado.
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