Texto de Carmela Fialho
O filme Queer Alma do Deserto da diretora Mónica Taboada-Tapia constrói a sua narrativa na trajetória da trans indígena Georgina Epiayú na luta para colocar o nome de mulher no seu documento de identidade. A diretora realiza um documentário de personagem, de cunho observacional, tentando posicionar a câmera como um instrumento de registro do cotidiano dessa mulher, sem que a mulher interaja diretamente com a câmera.
Sem a documentação definitiva com o nome feminino, Georgina, com o documento provisório, não tem direito a receber os benefícios do governo, nem pode votar. Assim, Alma do Deserto aborda não só o preconceito em relação a essa mulher trans, mas também uma de suas mais cruéis consequências, a invisibilidade. Georgina é oriunda do povo Wayúu, do clã Epiayú e vai à Uribia, capital indígena da Colômbia, para tentar resolver a questão da identidade definitiva, mas não obtem sucesso em suas investidas.
A fotografia calcada no cotidiano árduo e de resistência das comunidades indígenas, enfoca a beleza da vida em contato direto com a natureza em cenas que privilegiam os detalhes através de closes das mãos e rosto da personagem principal e sua caminhada pelo deserto, que simboliza também a sua condição de solidão perante o mundo que a cerca. A Trilha sonora do grupo O Grivo é um dos pontos altos de Alma do Deserto, criando temperos musicais que colaboram para acentuar o distanciamento proposto pela direção.
Os encontros que realiza pelo caminho marcam a trajetória de Georgina pelo deserto e fazem com que a personagem se defronte com questões ligadas à poluição por produtos químicos e dejetos das cidades estragando a água doce do rio. Nessa caminhada, ainda acompanhamos os protestos das comunidades locais contra os poderosos, que invadem os territórios indígenas com as ferrovias, pois o trem da mineração não pode parar, como dizia um cartaz publicitário da empresa. A diretora procura captar com a sua câmera essas mensagens que são introduzidas para além dos diálogos.
Mónica Taboada-Tapia faz do deserto um personagem e uma metáfora de Alma do Deserto, mostrando o deslocamento de Georgina por esse território inóspito, repleto de rios, estradas, barcos e praias, até chegar no seu povoado de origem que fica em uma praia. Lá ela visita os seus irmãos e familiares que a rejeitaram pela sua orientação de gênero. Entretanto, Georgina resolve procura-los devido o imbróglio envolvendo a sua documentação de identidade, pois caso morresse longe da família ninguém saberia quem ela era ou nada sobre sua origem. Em uma conversa com o irmão, ela descobre que ele só conseguiu a identidade com setenta anos de idade, depois de um longo processo burocrático imposto pelos brancos e que antigamente haviam mutirões nas aldeias para se tirar os documentos e atualmente não tem mais.
Por esse viés crítico, o filme se reafirma como uma denuncia da situação de abandono e exploração das comunidades indígenas na Colômbia, destacando principalmente os direitos que lhes são negados por não terem seus documentos legalizados, não só os de identidade, como também os das escrituras das terras.
O não pertencimento e o deslocamento constante de Georgina marcam Alma do Deserto, que procura mostrar a personagem em uma situação de desamparo e solidão. Mesmo quando enfim ela consegue a sua tão sonhada identidade, pouca felicidade transparece, muito porque a direção não busca envolver o espectador na trama, optando pelo distanciamento, talvez para acentuar a dupla situação de abandono da personagem, que além de trans é indígena. Mónica Taboada-Tapia transforma a plateia em mera observadora do sofrimento de Georgina, numa trama que pode ser difícil de ser acompanhada por um público pouco acostumado com esse tipo de narrativa que privilegia um ritmo mais lento.
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