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Mostrando postagens de abril, 2024

LUZ NOS TRÓPICOS (2020) Dir. Paula Gaitán

Texto de Marco Fialho O primeiro comentário que cabe a Luz nos Trópicos  é que essa é estruturalmente uma obra anti-épica. Há um elemento diacrônico presente, mas jamais utilizado com o intuito causal, pois a relação tempo-história é proficuamente aberta, passível de leituras diversas e amplas. Não se esgota jamais, nem antropologicamente, nem por qualquer outro viés de análise. As suas quase 4 horas e meia de duração são na verdade ilusórias, pois o tempo estendido sentido no filme nos convida a passear por tempos esparsos e culturas díspares, o que faz o tempo parecer mais dilatado ainda, tornando a tentativa de sua mensuração algo estéril e ineficaz.   Sem dúvida, a maior de todas as viagens de Luz nos Trópicos  é a sensorial. Somos convidados a simplesmente fruir, sentir sensações que as imagens e sons (sim, eles são muito vibrantes aqui) estão a provocar. Logo nas primeiras imagens do filme somos entregues às texturas. Imagens de uma Nova York distante, impregnada por um filtro av

LA CHIMERA (2023) Dir. Alice Rohrwacher

Texto de Marco Fialho A diretora Alice Rohrwacher tem se revelado uma artista criativa, que caminha em um terreno instável entre a realidade, o onírico e a história. Antes de La Chimera, filmou dois longas consistentes: Lazzaro Felice (2018)   e As Maravilhas (2014). Considero Alice uma herdeira cinematográfica profícua de Federico Fellini, por essa capacidade fantástica de falar da Itália por meio de imagens vindas do universo popular, juntando fábula com um realismo.  La Chimera  já se contamina pelo onírico logo na cena de abertura, onde Arthur (Josh O'Connor) é transpassado por uma dupla imagem de um sol inatingível, um que está tatuado nas costas de sua amada Beniamina (que encontra-se desaparecida ou morta) e um que ele vê se perdendo em um pôr-do-sol numa viagem de trem que o leva de volta à Toscana em busca desse amor perdido. Ele esteve preso por violar túmulos etruscos no passado, junto com um grupo de bandidos ordinários, e agora vai continuar a vagar entre o passado e o

DORIVAL CAYMMI - UM HOMEM DE AFETOS

Texto de Marco Fialho O filme de Daniela Broitman parte de uma conversa inédita de Caymmi na casa de um amigo. Mas não se detém só a isso, explora ainda a visão de familiares, empregada e principais amigos sobre ele, além de alguns registros em vídeos mais antigos.  Apesar de recentemente se ter filmado filmes sobre o compositor baiano, o documentário de Broitman revela particularidades interessantes de Caymmi, sem idolatria de sua personalidade e até questionando ideias sempre partilhadas de que ele era muito calmo. Vários relatos de familiares escapam um Dorival difícil de lidar no cotidiano, fora dos holofotes.  Caymmi também é retratado por todos como um mulherengo incurável, o que desagradava Stela, sua esposa. Inclusive é curioso não se ter uma fala de Stela, apesar de que muito se fala no documentário da presença forte dela na vida do compositor. Entretanto, essas revelações em nada suprimem o afeto como marca principal de sua personalidade tanto musical quanto pessoal.  Mesmo q

AUMENTA QUE É ROCK'N ROLL

Texto de Marco Fialho Aumenta que é Rock'n Roll , dirigido por Tomás Portella, é um filme sobre os sonhos de um homem que tornam-se rapidamente o de uma geração. A história é tão envolta de casos surpreendentes que ficamos na dúvida de quanto ali é inventado ou aumentado, o que me remeteu de imediato à maxima e célebre frase "quando a lenda se torna fato, imprima-se a lenda", extraída de O homem que matou o facínora , de John Ford.  A história de Aumenta que é Rock'n Roll  é baseada no livro de seu principal protagonista, Luis Antônio Mello, no filme interpretado com muito empenho por Johnny Massaro. O diretor Tomás Portella salienta na narrativa muito do tom bem- humorado e imprime um ritmo avassalador à obra cinematográfica. Às vezes chega a ser difícil respirar pela intensidade rítmica que nos atravessa com muita força. Alguns respiros seriam muito bem-vindos, o que realmente não acontece.    Os absurdos desse enredo são tantos que ficamos sempre de olho na possibi

ZONA DE EXCLUSÃO (2023) Dir. Agnieszka Holland

Texto de Marco Fialho Zona de Exclusão , filme dirigido   pela experiente diretora polonesa Agnieszka Holland ( Filhos da Guerra , Jardim Secreto ,  Eclipse da Paixão ),   trata de um dos temas mais necessários e graves de nossos tempos: o dos refugiados. E olha que eles não são poucos nesse mundo tomado pelas guerras, em especial, as que se sucedem no continente asiático. Nessa trama, se aborda refugiados vindos da Síria que tentam superar as fronteiras entre Belarus e Polônia, numa saga que beira o interminável. Agnieszka Holland opta por filmar um suspense com altas doses dramáticas, em um preto e branco soturno, que torna as imagens mais graves do que já seriam se fossem coloridas. Mas esse é um tema em que a carga emocional pode pesar e interferir no resultado final do filme, sobretudo na fluência narrativa. A diretora se engaja de tal forma ao tema que notamos uma mão pesada em diversas das cenas. Se Zona de Exclusão não chega a descambar para o melodrama, podemos dizer que se in

E A FESTA CONTINUA! (2023) Dir. Robert Guédiguian

Texto de Marco Fialho  O diretor Robert Guédiguian reúne em E a festa continua! vários de seus temas mais recorrentes: a viabilidade da luta política de esquerda, a questão dos armênios, a crise geracional, Marselha como cenário, um cinema simples e os seus dois atores preferidos. Essa é a mistura na qual o cineasta se sente mais à vontade para fazer um filme encantador e aqui não é diferente. O melhor do filme é a leveza que transpira pelos seus poros, uma afetividade que Guédiguian sabe filmar como poucos.  Há uma profusão de personagens em E a festa continua! , mas são Ariane Ascaride (Rosa) e Jean-Pierre Daurrossin (Henri) que dominam o melhor da cena. Claro, que o background de já ter trabalhado em quase todos os filmes de Guédiguian ajuda nessa química, pois tudo parece muito familiar nesse filme, além da própria ideia de família está impregnando a história como um todo. Não só os dois protagonistas, mas também a maioria dos atores e atrizes em cena já fizeram filmes com Guédigu

NÉVOA PRATEADA (2023) Dir. Sacha Polak

Texto de Marco Fialho  Névoa Prateada , dirigido por Sacha Polak, é um drama duro que acompanha a trajetória de Franky, papel vivido pela atriz Vicky Knight, que entrega muita intensidade nas cenas, uma jovem enfermeira que luta contra um difícil passado que deixou marcas visíveis em seu corpo. A diretora vai abrindo constantemente janelas para Franky, mas cena a cena vai fechando cada uma delas, como se essa procura fosse em vão e só resultasse em fracassos.  Durante toda a trama, a protagonista enfrenta problemas de variadas naturezas, como o preconceito de sua família quando Franky assume um relacionamento lésbico com uma ex-paciente do hospital em que trabalhava. A diretora Sacha Polak aborda frontalmente a agressividade da sociedade em relação à sexualidade de Franky. Agressões explícitas são feitas contra ela e a namorada em um ônibus pelo namorado da irmã.  O filme trata das oscilações desse novo relacionamento, e aos poucos, das rosas sobram apenas os espinhos. Os personagens v

SEM CORAÇÃO (2023) Dir. Nara Normande e Tião

Texto de Marco Fialho Sem Coração , dirigido por Nara Normande ( Guaxuma , de 2018) e Tião ( Animal político , de 2016), foi selecionado para participar da mostra Orizzonte, no 80° Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 2023, tendo sido muito bem recebido à época. Para mim, o filme funcionou como uma viagem sensorial a um universo muito próprio, o de um lugarejo praiano não urbanizado, a princípio sedutor, mas que aos poucos revela os matizes da desigualdade socioeconômica brasileira.   O que a diretora e o diretor de Sem coração costuram a todo instante são as camadas que vão sendo desvendadas, em especial, as discrepâncias entre o mundo dos despossuídos e dos que vivem do privilégio inerente à sua histórica condição social. Esse é o cerne desta obra profundamente sensível, que se mostra empática com muitos dos personagens, em especial com Duda (chamada de Sem coração devido a uma cicatriz que tem no peito), interpretada com muita sensibilidade por Eduarda Samara, e com Tamar

A PAIXÃO SEGUNDO G.H. (2023) Dir. Luiz Fernando Carvalho

Texto de Marco Fialho "A paixão segundo G.H." deve ser encarado como aquele filme que desafia o espectador, da primeira à última cena, por não permitir uma brecha que facilite a sua fruição. O primeiro elemento que chama logo a atenção é o formato 4x4 da tela (um quadrado), que acentua e favorece uma série de closes que a câmera faz de G.H. (uma Maria Fernanda Cândido plena, inteiramente tomada pela personagem). O que mais marca o filme é o monólogo de G.H. Ele é majestoso, imperativo... sufocante. Luiz Fernando Carvalho faz dele a sua arma mais poderosa para desconstruir o clássico romance de Clarice Lispector. Os excessos interpretativos tencionam constantemente os limites entre teatro, cinema e literatura. Se o close transforma essa obra em uma peça de câmera altamente cinematográfica, a verborragia o aproxima do teatro (até mais do que da literatura) pela dramaticidade que as cenas são filmadas. Mas existem momentos em que a palavra ganha contornos nítidos, já que a sonor

NADA SERÁ COMO ANTES: A MÚSICA DO CLUBE DA ESQUINA (2023) Dir. Ana Rieper

Texto de Marco Fialho O crítico francês Jean Douchet, em um texto hoje clássico sobre crítica de cinema (A arte de amar, 1961) escreveu que um crítico para fazer um bom texto deve buscar um equilíbrio entre a razão e a emoção. Confesso minha dificuldade em empregar essa metodologia após assistir a "Nada será como antes", de Ana Rieper. Isso porque assistir ao documentário sobre o Clube da Esquina, ou mais especificamente, sobre o processo de composição das músicas do icônico LP duplo, fui tomado por uma baita emoção, pois funcionou para mim como se estivessem contando espiritualmente um pouco da minha vida, da minha formação como sujeito que sou hoje.  O LP "Clube da Esquina nº 1" (1972) foi decisivo para a minha juventude entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Lembro de ouvir infinitamente tanto o volume 1 quanto o 2, lançado em 1979. A ideia de um grupo heterogêneo, livre, que flertava com o caótico e que juntos fizeram um disco mítico está presente n

VERISSIMO (2023) Dir. Angelo Defanti

Texto de Marco Fialho "Verissimo" é um documentário especial, daqueles que ficam à espreita, tentando descobrir um personagem pelas beiras. Sua empreitada torna-se surpreendente, pois debaixo dos escombros do tempo, o filme revela detalhes de um Verissimo que quase não fala, embora observe muito sobre o mundo a sua volta. O filme visita Verissimo às vésperas de completar 80 anos de idade, se instala em sua casa e adota cinematograficamente uma atitude compatível a do personagem, a de observar a partir de uma câmera fixa, discreta em sua indiscrição de se alojar na intimidade de Verissimo.  Logo no início, o diretor Angelo Defanti mostra planos da casa do protagonista. O silêncio e a paz predominam, apenas interrompidos pelo som de um peculiar badalar de um grande e imponente relógio vertical. O tempo toma conta do espaço e parece ameaçar com o aviso permanente de que os 80 anos estão chegando. O badalar insistente não deixa que esqueçamos disso. O filme registra esse tempo co

COBERTURA DO FESTIVAL "É TUDO VERDADE" - EDIÇÃO 2024

COBERTURA É TUDO VERDADE - EDIÇÃO 2024 UM FILME PARA BEATRICE (2024) Dir. Helena Solberg COTAÇÃO: 8 Comentário: A escritora Beatrice Andreose, depois de assistir ao documentário "A entrevista", de 1966, dirigido por Helena Solberg, lança uma pergunta à diretora brasileira: Como estão hoje as mulheres brasileiras? A partir dessa interrogação Solberg vai a campo tentar, se não responder, pelo menos jogar uma luz sobre o tema. Assim, a diretora assume a narração do filme para a partir de questões postas em seus filmes antigos até chegar aos nossos dias, onde em conversa com a professora Heloísa Buarque de Hollanda se esforça por entender a complexidade do feminismo dos nossos tempos. Fica evidente, que precisamos hoje expandir o campo do feminino, com vozes, negras, trans e não binárias. Conclui-se ainda que a discussão acerca do gênero precisa ser expandida para ser melhor compreendida. Um filme imprescindível, que parte de uma pergunta para chegar a tantas outras, o que faz de

ANTONIO CANDIDO, ANOTAÇÕES FINAIS (2023) Dir. Eduardo Escorel

A sonata cândida de Escorel  Texto de Marco Fialho "Antonio Candido, anotações finais", de Eduardo Escorel, se desenvolve para os espectadores, ou melhor, ouvintes, como uma sonata. O diretor parte de seus cadernos, escritos desde à infância, centrando nos pensamentos registrados nos três últimos cadernos, de 2015 a 2017. O caráter diminuto da proposta formal não o desmerece como documentário, muito pelo contrário, o expande por concentração, de um mínimo que se torna gigante na tela, tal como as sonatas de Beethoven, que aliás, inundam nossos sentidos durante a projeção e imantam a nossa atenção.         Escorel consegue aqui dar uma aula de reconstituição histórica e memorialística como poucos. Em mãos, tem-se pouco, os cadernos de anotações de Candido e algumas imagens de arquivo desse grande intelectual. A grandeza do pensamento de Antonio Candido explode a cada nova revelação que este nos faz, tendo a voz precisa e aveludada do ator Matheus Nachtergaele pontuando a narra