Texto por Marco Fialho
A Garota da Agulha é um drama que investe numa narrativa que contorna habilmente o filme de terror, que se utiliza de uma premissa que a história humana produz e produziu momentos que colocam em xeque o que podemos definir o ser humano. Assim, a obra do dinamarquês Magnus von Horn trabalha no próprio limite da humanidade.
Mas antes de entrarmos efetivamente na trama de A Garota da Agulha precisamos dizer antes de mais nada o quanto nossa experiência como espectador nesse filme decorre de uma situação histórica específica, pois sem se pensar no seu contexto pouco se compreenderá o alcance dessa obra tão dura, filmada toda em preto e branco, o que só faz agravar tudo o que vemos em tela. Mais precisamente, Magnus von Horn fala de uma nova sociedade que emerge em um período pós-guerra, aqui a Primeira Guerra Mundial (1914-19) e da deformidade não só física quanto moral que ela provoca nos tais seres humanos.
Esses períodos específicos produzem aberrações, aliás como a maioria das situações-limites da história geram. Assim, a personagem Karoline, numa interpretação impactante de Vic Carmen Sonne, se constrói à nossa frente. A trama inicial lembra Anora, de Sean Baker, uma mulher jovem, desesperada e só, uma operária de uma tecelagem, que precisa desesperadamente pagar o aluguel e vê no sexo com o patrão um caminho para a redenção financeira e uma mudança em sua vida. Tudo caminha bem até surgir a mãe do jovem empresário a obrigá-lo a desmanchar o casório que lhe foi prometido. A promessa do tal paraíso se transforma em pesadelo do dia para noite, em um estalar da mãe do rapaz, que fica indiferente à própria gravidez da jovem operária, mesmo depois de submete-la a uma humilhante comprovação médica. A Garota da Agulha vai além da denúncia social, quer construir uma imagem sobre o impacto da história na vida das pessoas comuns, que transitam anônimas pelas ruas, longe dos holofotes dos grandes acontecimentos que movem as nações.
Se em Anora a sinopse termina basicamente nessa história, em A Garota da Agulha ela se mostra uma pequena porta para adentrar em uma história macabra, que revelará muito sobre os monstros que uma guerra pode fazer emergir. Magnus von Horn trabalha nessa chave, e nos carrega pelas mãos para evidenciar o horror que nasce da maior miséria de todos os tempos que é o produto direto da guerra. Primeiro, o diretor descortina o dilaceramento familiar, ao trazer para a história a volta do marido de Karoline como um homem deformado facialmente pela guerra. Esse personagem perambula à margem no enredo, mas não deixa de ser o maior simbólico do que Magnus von Horn quer dizer com seu filme. Esse homem aceita seu destino desastroso e vai trabalhar como atração de circo, como uma aberração.
O horror gótico, em um visível flerte expressionista de Magnus von Horn, adentra na história com a personagem sinistra de Dagmar (excepcional trabalho de construção de personagem de Trígono Dyrholm), uma senhora que supostamente vende recém-nascidos de mães sem recursos para criá-las para famílias bem-sucedidas socialmente. Essa personagem é mostrada como um ser complexo, inerente ao contexto social de uma grande guerra mundial, ela não deixa de ser mais um sinal da deformidade que esse evento produziu. Nunca se pensa nessas existências que estão à sombra dos grandes acontecimentos, mas que sofrem com eles e precisam se adaptar de alguma maneira. Magnus não vê Dagmar como um vilão, como uma personagem sem camadas, uniforme. Pelo contrário, a vê como uma possibilidade do contexto, afinal, como é difícil permanecer digno diante de determinadas circunstâncias históricas. É disso que Magnus fala frontalmente.
Além do expressionismo, Magnus von Horn homenageia também os inventores do cinematógrafo ao se remeter numa das cenas à famosa saída das operárias da fábrica. O plano é muito parecido e dificilmente foi aleatório. Tem cenas, como a da banheira pública, em que Magnus incorpora uma música de filme de terror, onde o intuito é salientar a tensão de uma determinada situação, até mesmo como um absurdo vindo da própria realidade. Magnus nos interroga com suas imagens fortes sobre como foi viver em uma determinada época onde os limites da humanidade estiveram sistematicamente abalados pelo horror da guerra. Determinados assassinatos tem um apelo simbólico. Como julgar alguém por matar bebês quando se apenas foi isso que a sociedade produziu, ao mandar seus jovens morrerem numa trincheira? A personagem de Dagmar, no fundo traz essa indagação, sobre o valor da vida para a sociedade.
Para Magnus, a guerra vai além das trincheiras, ela invade o cotidiano e se alastra para além de sua demarcação histórica. Assim, a guerra não começou em 1914 e terminou em um anúncio de jornal em um dia qualquer de 1919. A guerra chega antes e permanece muito tempo depois e é isso que A Garota da Agulha professa, o horror continuado e encruado na alma das pessoas. Mas o interessante é o quanto Magnus von Horn resgata de humanidade em meio ao caos. É a possibilidade que ele extrai do horror ao permitir que Karoline traga a sua resposta ao contexto e assim faça a sua redenção. Sim, por mais terrível que tudo caia sobre nós, ao final, a vida presta.
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