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Mostrando postagens de março, 2019

UM ELEFANTE SENTADO QUIETO - Direção de Hu Bo

Por Marco Fialho A obra única, derradeira e genial de Hu Bo A longa duração do filme "Um elefante sentado quieto" pouco importa, ou melhor, importa, e muito, pois cada minuto de seus 254 minutos é valioso e preciso, fragmentos preciosos que levamos para casa ao final desse drama ao mesmo tempo tão intimista (existencial) e social. Cada plano é executado com um rigor impressionante. Uma obra-prima que parece ser de um experiente cineasta, mas que foi realizada pelo jovem Hu Bo, de apenas 29 anos. O diretor Hu Bo suicidou-se logo após terminar o filme. É incrível a existência de uma dor sincera que o diretor consegue impingir a cada tomada de "Um elefante sentado quieto". Inclusive, no filme ocorrem dois suicídios, o que mostra o quanto o tema estava presente em seu pensamento. A atmosfera do filme fica a cargo de uma fotografia descolorida, onde as cores esmaecidas possuem um desagradável tom esverdeado, que muito lembra aquela carne em processo de putrefação.

AS FILHAS DO FOGO - Direção Albertina Carri

O empoderamento do sexo selvagem feminino Crítica por Marco Fialho "A pornografia é o erotismo dos outros"                                                          Guillaume Apollinaire "As filhas do fogo" é no mínimo um dos filmes mais diferentes do ano. Dirigido por Albertina Carri, a obra tem sim aqui e ali seus altos e baixos, suas irregularidades, mas como negar que nela há algo de impactante e que de certa forma faz muitas pessoas saírem constrangidas da sala de cinema. Em ocasião da morte de Domingos Oliveira, ouvi uma frase dele que achei que se encaixa mais do que nunca a "As filhas do fogo": "que a arte coloca no mundo coisas que antes não estavam lá". A ideia de fazer um road movie com onze mulheres se "pegando" durante duas horas é algo surpreendente, ou não é? Ouvi algumas críticas falarem que o filme é mais sexo do que enredo e fiquei a pensar nisso. Eu diria que isso é um fato mesmo, uma constatação, mas o m

NÓS - Direção de Jordan Peele

Atenção: para que algumas partes fossem melhor aprofundadas, a crítica contém alguns spoilers. O espelho que esconde e revela Por Marco Fialho Depois do estrondoso e justo sucesso de Corra!, primeiro longa dirigido por Jordan Peele, era natural a enorme expectativa em torno do seu segundo trabalho, o filme "Nós". Dois pontos iniciais importantes: de um lado "Nós" reafirma uma inclinação de Peele para o gênero terror (mesmo que esse venha misturado com outros gêneros); de outro o tema racismo não se coloca como protagonista dessa nova obra, apesar de também estar presente em muitos momentos da trama. Genericamente, pode-se dizer que "Nós" traz duas perspectivas de leitura, uma social e outra psicológica. Essas duas abordagens parecem correr em paralelo durante o desenvolver da trama. Há uma visível metáfora sobre o comportamento social humano, assim como há uma análise psicanalítica acerca das máscaras que utilizamos quando nos deparamos com situa

IMAGEM E PALAVRA - Direção de Jean-Luc Godard

Apenas o fragmento carrega a autenticidade Crítica por Marco Fialho Godard é um daqueles diretores que todos sempre acompanham com grande interesse e expectativa. Apesar dos 88 anos, Godard continua sendo o cineasta mais influente do planeta. O mais amado e o mais odiado. Seus filmes trazem sempre algo de inesperado e de diferente. Mais do que um artista, Godard é um pensador contemporâneo que se utiliza da linguagem do cinema para expressar ideias. Nesse último trabalho, "Imagem e palavra", comprova o compromisso com um cinema livre, sem amarras narrativas, como aliás já vem desenvolvendo nos últimos anos. No longa anterior, "Adeus à linguagem", Godard faz um uso inovador do 3D no cinema, mostrando o quanto criativo esse recurso pode ser, e como a grande indústria do entretenimento o vem utilizando de maneira reduzida e pobre, apenas como profundidade e como ilusão de objetos saindo da tela do cinema na direção do espectador. Apenas o fragmento carrega a auten

AS MIL MULHERES - Direção de Rita Toledo e Carolina Benjamin

A força do feminismo nas artes e na vida Crítica por Marco Fialho Apesar dos imensos desafios ainda a serem enfrentados, a luta das mulheres contra o machismo está cada vez mais forte e evidente na sociedade brasileira. Felizmente, o cinema anda se ocupando cada vez mais pelo tema, especialmente as mulheres que vem ocupando mais espaços nesse reduto tão masculino e machista que é o do cinema. Por isso, filmes com essa temática são mais constantes do que há alguns anos atrás e muito por conta de uma mobilização crescente de feministas que viram no audiovisual uma ferramenta importante para levar denúncias e reflexões sobre temas que envolvem diretamente as mulheres. Mas preciso realmente confessar que "Mil mulheres", documentário poderoso dirigido por Rita Toledo e Carolina Benjamin, foi o que mais me impactou até o momento. Tudo no filme é altamente potente. Nele, as diversas formas de violência contra a mulher vem à tona, o que o torna um produto visceral e necessário

REVIVER - Direção de Cavi Borges e Patrícia Niedermeier

O fogo de reviver Crítica por Marco Fialho "Reviver" é o segundo filme da trilogia de viagem da dupla de diretores Cavi Borges e Patrícia Niedermeier. Em comparação ao primeiro filme, "Salto no vazio", "Reviver" possui uma produção mais simples e uma narrativa igualmente sem grandes rebuscamentos. Mas vale destacar o quanto o filme é saturado de singelezas e poesia. Apesar de ter um fiapo de história, "Reviver" deve ser desfrutado como um filme de ordem mais sensorial e muito devido às cenas onde Patrícia Niedermeier empresta o corpo para desenhar uma atmosfera sempre repleta de momentos lúdicos. Os movimentos de Patrícia magnetizam a tela, transformam cada aparição pura em poesia e movimento, tamanha a desenvoltura que apresenta em cena, seja ao som dos atabaques maranhenses seja numa cena reflexiva em plena duna da praia.            Assim como em "Salto no vazio", há em "Reviver" o uso de narrativa em off , que a pr

O QUE RESTA - Direção de Fernanda Teixeira

Uma geração e seu quebra-cabeça Crítica por Marco Fialho "O que resta" marca uma bela estreia em longa-metragem de Fernanda Teixeira. O filme é um daqueles que se pode chamar de geracional. Seu objeto é uma geração abastada, branca e repleta de crises existenciais, enfim, o famoso white people problems . Esse é o primeiro dado a ser situado no filme que realiza uma instigante análise do ponto de vista de uma determinada juventude da zona sul carioca. A partir do que é visto em tela, há algo de intrigante no título, afinal o que resta, assim como o próprio filme, insinua uma dubiedade interessante. O título seria referenciado a algo pejorativo, isto é, o que sobrou de uma determinada geração? Ou ainda, seria invocado um quê de positivo, pois aqueles personagens faziam tudo o que caberia a eles realizar, no caso, viver com intensidade a sua própria vida? O que proponho aqui é exatamente isso, refletir a partir dessa ambiguidade, e mais do que isso, pensar a própria obra p

"O PASTOR CLÁUDIO" E "O SILÊNCIO DOS OUTROS"

O dia em que o imenso Oceano Atlântico virou um córrego: o encontro entre Cláudio Guerra e as vítimas do franquismo. Por Marco Fialho "Canta, mas canta triste Porque tristeza é o que se tem pra contar Chora, mas chora rindo Porque é valente quem nunca se deixa quebrar Ama, o morro ama o amor aflito, o amor bonito que pede outra história" Trecho extraído da canção "Feio não é bonito", composta por Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri e gravada por Nara Leão no álbum "Nara - Me - 10", lançado no simbólico ano do golpe civil-militar de 1964 pela gravadora Elenco. Disco igualmente simbólico por trazer pela primeira vez ao grande público a força dos sambas de Zé Kéti, Cartola e Nelson Cavaquinho. A epígrafe também podia ser trecho de Luz Negra do Nelson Cavaquinho: "A luz negra de um destino cruel / Ilumina o teatro sem cor / onde estou desempenhando o papel / De palhaço do amor"                    Coincidentemente em menos de uma sem

CRIMES OBSCUROS - Direção de Alexandros Avranas

Um filme artisticamente sem personalidade  Por Marco Fialho Enquanto em "Miss Violence", o diretor Alexandros Avranas partiu do universo íntimo de uma família tradicional, aparentemente convencional, para falar de uma Grécia estruturalmente carcomida, em "Crimes Obscuros" ele revira uma história verídica e sinistra ocorrida nos estertores do socialismo real na Polônia. Mas o resultado dessa produção norte-americana resulta bem inferior ao seu trabalho anterior, com obviedades narrativas, imagéticas e interpretativas muito rudimentares.  Mesmo tendo dois atores tarimbados e eficientes no elenco, como Jim Carrey e Charlotte Gainsbourg, Avranas não consegue amarrar uma narrativa que envolva o espectador. E tem mais: esse tipo de denúncia na qual o filme se propõe já foi realizada em abundância pelo próprio cinema polonês contemporâneo. Por ser baseado em fato reais, o diretor poderia ter criado um roteiro potente, impregnado de realismo e que pudesse trazer mais