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Mostrando postagens de março, 2024

A CAMAREIRA (2014) Dir. Ingo Haeb

Texto de Marco Fialho O cinema alemão é sempre surpreendente, capaz de revelar obras diferenciadas e inusitadas. É o caso de "A Camareira", segundo longa do diretor Ingo Haeb. Por meio de uma personagem, a camareira Lynn, o diretor lança imagens que por si esboçam um viés no mínimo curioso sobre a sociedade alemã do início do século XXI, em especial a relação entre o mundo do trabalho e o mundo íntimo. Esse é um típico drama cômico, capaz de revelar um mundo que caminha a passos largos para a impessoalidade e dominado pelo asséptico, e Ingo Haeb pode ser visto como um cineasta a questionar um determinado  status quo que tende a uma crescente indiferença frente ao humano. Desde a primeira cena de "A camareira", o que vemos é a fascinante personagem Lynn tentando entender o mundo com seu espírito curioso e sistematicamente se assustando com ele. A direção de Ingo Haeb é de um raro primor na composição dos planos, a maioria deles fixos ou com delicados movimentos de c

FRIDA (2023) Dir. Carla Gutiérrez

Texto de Marco Fialho "Frida", dirigido por Carla Gutiérrez, é um documentário no mínimo impactante e forte, que traça um retrato não só de uma grande artista, mas também de uma mulher e cidadã de alto calibre histórico. O filme redimensiona, em especial, a humanidade vigorosa que possibilitou Frida tornar-se um dos grandes nomes do século XX, uma referência de como ser mulher em um mundo tomado pelo poder masculino. O maior mérito da diretora Carla Gutiérrez é tornar Frida a maior narradora do filme pela voz calibrada de Fernanda Echevarría del Rivero, se utilizando dos diários e cartas da artista para que somente ouvíssemos a sua voz. Quando temos o ponto de vista de Diego Rivera ouvimos a voz de Jorge Richards, assim cada personagem vai assumindo a sua própria voz, o que faz o filme crescer eticamente.  Carla Gutiérrez também incorpora à narrativa o fantástico trabalho de animação comandado por Sofia Inés Cázeres Lira, que atua na expansão das obras pictóricas de Frida Kah

AMMONITE (2020) Dir. Francis Lee

Texto de Marco Fialho O título do filme de Francis Lee investe em um duplo sentido: um relativo à paleontologia, em que ammonite é um tipo de fóssil na qual a personagem Mary Anning (Kate Winslet) se dedica arduamente; em outro sentido, o título faz referência à própria personalidade introvertida e antissocial da pesquisadora, já que as ammonites são fósseis em formato de conchas. "Ammonite" se propõe a discutir essa personagem misteriosa de Mary, sua relação tanto com a sociedade quanto com a sua rotina como paleontóloga.  Mary Anning vive reclusa, em uma pequena cidade marítima em Lyme Regis, sul da Inglaterra, hoje conhecida como Costa Jurássica, graças ao trabalho dessa grande pesquisadora. Mas o filme dá uma guinada quando entra em cena Charlotte Murchison (Saoirse Ronan), mulher de um negociante interessado nas pesquisa de Mary. A história vai lentamente assumindo uma faceta romântica, com o envolvimento amoroso dessas duas mulheres fragilizadas por um mundo excessivame

SAUDOSA MALOCA (2023) Dir. Pedro Serrano

Texto de Marco Fialho "Saudosa Maloca", dirigido por Pedro Serrano, poderia até ser mais uma das várias cinebiografias dedicadas aos nossos grandes nomes da música popular brasileira, mas felizmente não o é. Talvez, o mais adequado a dizer do filme é que ele está mais para nos aproximar de um universo das músicas do grande Adoniran Barbosa, assim como de sua idiossincrática figura. E esse é o charme dele. Esse fato explicado acima nos encaminha para uma questão central em relação ao espectador: se você não é familiar do universo de Adoniran, pouco vai apreender e até curtir as diversas referências nas quais o filme se assenta. A começar pelos personagens, que nada mais são do que os que desfilam pelos sambas e canções compostas por esta personalidade tão paulistana do Bexiga, com seu português macarrônico e popularesco, com os neologismos típicos desse mundo contaminado pela cultura urbana vinda das ruas. Personagens como Joca (Gustavo Machado), Matogrosso (um esplêndido

MORCEGO NEGRO (2022) Dir. Chaim Litewski e Cleisson Vidal

Texto de Marco Fialho "Morcego negro" resgata um dos momentos mais bizarros da história política brasileira, a passagem meteórica e avassaladora do empresário PC Farias pelo governo Collor de Mello, lá pelo início dos anos 1990. Uma aventura quixotesca, que nasceu nas Alagoas, passou por Brasília e terminou nas mais obscuras páginas policiais. Em "Morcego Negro", a montagem impressiona por encadear as fases da vida de PC Farias aos depoimentos de pessoas que conviveram com ele, sem esquecer de incluir as memórias que pululam de arquivos audiovisuais e fotográficos da família e amigos. A história é contada seguindo a cronologia dos fatos, o que garante uma boa atenção do público ao filme. Alguns momentos o documentário é tomado pela comédia, muito dada pelo inusitado que foi a trajetória desse personagem, que mesmo vindo de uma camada financeira mediana, ganhou milhões, além de conquistar uma influência política em um momento em que as maracutaias se avolumaram no pa

PARA SEMPRE UMA MULHER (1955) Dir. Kinuyo Tanaka

Texto de Marco Fialho Apesar de bem desconhecido no Brasil, "Para sempre uma mulher", filme dirigido por Kinuyo Tanaka, é uma obra-prima do cinema japonês do pós-guerra. Com maestria, a diretora trabalha exemplarmente o drama da trama, o contornando com total habilidade, sem cair no melodrama. Tanaka explora os meandros do drama da protagonista Fumiko, aprofunda todas as possibilidades oferecidas pelo arco dramático da personagem. Uma aula de como desenvolver um roteiro e como a direção pode expandi-lo.  Fumiko é interpretada por Yumeji Tsukioka, em um trabalho impressionante, pode-se dizer raro, destemido e sem freio, de uma entrega absoluta. Fumiko é uma personagem que vai fundo no universo feminino do pós-guerra, que casa por pressão familiar, vive um casamento infeliz, embora encontre coragem para se divorciar e iniciar uma nova vida, se revelando uma poeta reconhecida e de grande talento. Tanaka constrói a partir daí um drama vigoroso, realista ao extremo, mas sem deixar

A LUA NASCEU (1955) Dir. Kinuyo Tanaka

Texto de Marco Fialho "A lua nasceu" é uma obra clássica do cinema japonês, em que se destacam aspectos ritualísticos na filmagem e isso faz toda a diferença para a construção narrativa. Partindo de um roteiro do mestre Yasujiro Ozu, sente-se o seu olhar em diversos momentos, seja pelo universo temático envolvido seja pela presença de atores e atrizes que figuraram em suas obras. No plano da direção, algumas cenas parecem evocar descaradamente Ozu.  A trama abarca a relação familiar entre duas irmãs, a jovem viúva do irmão e pai viúvo, Sr. Asai (Chishû Ryû), que pacientemente, e às vezes com uma leveza irônica e perspicaz, contempla a chegada de alguns pretendentes amorosos que rodeiam a sua casa. A protagonista de "A lua nasceu" é Setsuko, a filha mais nova do Sr. Asai, que atua como cupido para a tímida irmã Ayako, mas acaba se apaixonando por Shoji, um jovem preguiçoso e meio sem rumo na vida.  O pano de fundo da história é a acelerada modernização capitalista do

O SABOR DA VIDA (2023) Dir. Anh Hung Tran

Texto de Marco Fialho Ouvi muitos dizerem que "O sabor da vida", dirigido pelo vietnamita Anh Hung Tran, era uma cópia de "Festa de Babette" (1989), filme dinamarquês de Gabriel Axel, ou ainda de "Como água para chocolate" (1992), do mexicano Alfonso Arau. Fora o fato de todos esses filmes terem a culinária como elemento central na trama, nada mais os aproximam. Cada um possui uma abordagem própria que os distingue por completo um do outro. "O sabor da vida" pode ser definida como uma obra sobre o amor de um homem por uma mulher que dividia a mesma paixão pela arte da culinária. Não casualmente, a atuação do elenco se torna crucial para o sucesso da empreitada narrativa de Anh Hung Tran, em especial a participação do casal protagonista Dodin (Benoît Magimel) e Eugenie (Juliette Binoche). Há portanto uma previsibilidade na trama, já que da primeira à última cena o filme está sempre transitando pela relação de Dodin e Eugenie, apesar de não podermo

TODOS NÓS DESCONHECIDOS (2023) Dir. Andrew Haigh

Texto de Marco Fialho "Todos nós desconhecidos" me parece uma obra perfeita para se discutir uma tendência de um tipo de filme em voga nos nossos dias. Tudo nele atende a um propósito comercial muito evidente, de emocionar o público de maneira calculada e nesse ponto de vista é certeiro e eficiente, em especial porque aqui se envolve e se costura milimetricamente aspectos emocionais à narrativa do filme. Sei que essa afirmação pode atrair muitas discordâncias, mas ela é necessária de ser colocada justamente nesse instante, em pleno ano de 2024. Vamos começar com a camada mais vista e mais evidente que o filme nos traz, a espírita, que costura toda a trama, de modo a ser uma escora poderosa de sustentação da própria narrativa. Apesar de ficar na dúvida se realmente era uma menção ao espiritismo, ou se tudo não faria parte do imaginário do protagonista Adam (em uma interpretação realmente muito delicada de Andrew Scott). Mas cheguei à conclusão de que em última instância, sendo