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Mostrando postagens de novembro, 2023

ROBERTO FARIAS, MEMÓRIAS DE UM CINEASTA (2023) Dir. Marise Farias

Texto de Marco Fialho O documentário "Roberto Farias, memórias de um cineasta" além de ser um expressivo compêndio do cinema brasileiro da segunda metade do século XX, se consubstancia como um precioso registro afetivo de uma filha para o seu pai. A diretora Marise Farias assume uma das narrações do filme, enquanto o irmão Reginaldo Farias, se encarrega, de dizer em off, partes do diário de Roberto Farias. Tudo fica em família, aliás uma família para lá de cinematográfica. De fato são muitas memórias ligadas a Roberto Farias: de filmes que dirigiu, produziu, do cargo que exerceu como único cineasta presidente da EMBRAFILME nos anos 1980. E talvez essa seja realmente a maior riqueza de "Roberto Farias, memórias de um cineasta", a de resgatar a ampla importância desse personagem, muito para além de seu papel como diretor, mas igualmente como político na época mais difícil da política brasileira do século XX, o período da ditadura militar pós a decretação do AI-5 (Ato

FOLHAS DE OUTONO (2023) Dir. Aki Kaurismäki

Texto de Marco Fialho  O veterano diretor finlandês Aki Kaurismäki realiza em "Folhas de Outono" um dos melhores filmes de sua longeva e bem-sucedida carreira. O diretor narra a história de Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen), dois personagens solitários em busca de afeto em um mundo hostil.  Inspirado pela frieza do mundo, Kaurismäki narra a história abusando do uso de planos fixos, em que a imobilidade da câmera expressa como os personagens se sentem diante do mundo. Em contraponto a essa frieza, Kaurismäki valoriza o âmbito da interpretação dos atores não por eles, mas com uma câmera que sempre privilegia mostra-los por meio de enquadramentos que os destacam na cena. Com isso, o destaque maior para o diretor é a própria cena.  A fotografia de "Folhas de Outono" forja uma imagem límpida, com cores chapadas, que em contraste entre si tornam-se vívidas. Assim, o diretor abusa do vermelho, azul e cinza, brincando com elas em um jogo constante entre o fundo e

MONSTER (2023) Dir. Hirokazu Kore-eda

Texto de Marco Fialho "Monster" é um Kore-eda voltando à velha forma. Um dos pontos altos do filme é a montagem, que costura com requinte uma trama repleta de mistérios que aos poucos vai sendo revelada. O roteiro de Yuji Sakamoto tem uma inspiração "Rashomon", a obra-prima de Akira Kurosawa, em que vamos conhecendo os acontecimentos por meio de pontos de vistas diversos, que aqui transformam-se mais em perspectivas, já que o tom confessional do clássico de Kurosawa não existe em "Monster".   No começo ficamos um pouco perdidos, sem saber qual seria o protagonista do filme. Alguns personagens vão participando de acontecimentos, assim acompanhamos Minato Mugino (Soya Kurokawa), Saori Mugino (Sakura Ando), a diretora da escola (Yuko Tanaka), o jovem professor Sr. Hori (Eita Nagayama) e o colega de turma Yori Hoshikawa (um ótimo Hinata Hiiragi). Em um certo ponto, voltamos na história para conhecermos a visão de um certo personagem. E essa estratégia narrativ

NELSON PEREIRA DOS SANTOS - VIDA DE CINEMA (2023) Dir. Aída Marques e Ivelise Ferreira

Texto de Marco Fialho Quando nos dispomos a falar de Nelson Pereira dos Santos, a conhecer suas obras e o seu pensamento sobre cinema, chegamos mais perto do próprio Brasil. Nelson fez parte de uma geração que se dedicou a mergulhar em nossas raízes mais profundas, que acreditou ser possível compreender o país para transforma-lo. Influenciado por uma concepção modernista, ele buscou as raízes do nosso subdesenvolvimento, assim realizou obras fundamentais, com sérias implicações políticas e estéticas, pois era preciso modificar tanto as estruturas sociais quanto as estéticas que grassavam no Brasil dos anos 1950, um país que queria crescer para enriquecer poucos às custas de muitos.  O modo de representar o país enquanto imagem não o agradava, pretendeu então trazer as camadas mais pobres para o protagonismo de seus filmes, como denúncia e também como possibilidade transformadora. A grandeza do documentário "Nelson Pereira dos Santos - Vida de Cinema" é capturar essa essência

NAPOLEÃO (2023) Dir. Ridley Scott

Texto de Marco Fialho Ridley Scott é um típico realizador da mega indústria de Hollywood. Produziu, roteirizou e dirigiu dezenas de projetos cinematográficos desde os anos 1960, quando deu início a uma carreira sólida, com sucessos de crítica e público incontestáveis. Como diretor fez obras magníficas do cinema, como "Alien, o oitavo passageiro" (1979), "Os Duelistas" (1977), "Blade Runner" (1982) e "Thelma & Louise" (1991), além de bons filmes como "Gladiador" (2000), "Chuva negra" (1989) e "O gângster" (2007), mas teve lá os seus fracassos como "Prometheus" (2012), "Cruzada" (2005) e "Casa Gucci" (2021). Evidente que podíamos citar outros filmes que ficaram aqui de fora, mas apenas queria pontuar como a carreira do diretor foi marcada pela instabilidade criativa, algo bem comum a um artista que muito filmou durante os últimos 50 anos.  "Napoleão", o seu mais recente traba

MEMÓRIAS DE PARIS (2023) Dir. Alice Winocour

Texto de Marco Fialho Há filmes que trazem como temática a morte e a vida, e há outros que colocam no centro da discussão os traumas. Esse é o caso de "Memórias de Paris". Não é uma obra sobre um atentado, que questiona suas motivações, mas que aborda as consequências que provoca na vida de quem sobreviveu a esse ato violento. O atentado instaura uma impessoalidade feroz, quem é afetado por ele, na maioria das vezes não entende o que levou uma pessoa ou grupo a um ato de tamanho irracionalidade.  A diretora Alice Winocour conduz tudo com maestria ao centrar a sua investigação sobre trauma a partir da personagem Mia, uma sobrevivente que perdeu parcialmente a memória acerca do fatídico acontecimento. Esse estratagema é perfeito, para que Winecour trate o roteiro de maneira fragmentada, tal como os estilhaços da vitrine do bistrô atacado por um homem fortemente armado. O mais brilhante é a constatação, cena a cena, de que jamais teremos a história reconstituída, e que nosso con

CULPA E DESEJO (2023) Dir. Catherine Breillat

Texto de Marco Fialho Embora a história de "Culpa e Desejo" seja bem batida no cinema, a do envolvimento de uma mulher casada, por volta de seus 50, anos com um jovem, ali na casa dos 17 anos de idade, o filme da diretora Catherine Breillat possui uma grande solidez narrativa, com silêncios preciosos, interpretações consistentes e um roteiro muito bem alinhavado. "Culpa e Desejo se constitui um ótimo exercício dramatúrgico ao explorar os desejos tanto do jovem Théo quanto de Anna, a madrasta. Apesar de estar lidando com tabus, Breillat abre uma investigação cuidadosa, pormenorizada dessa relação. Mais do que tratar simplesmente de uma traição, a diretora trata o caso como um encontro de duas solidões, de dois corpos carentes por atenção, em busca de fantasias e de emoções intensas. Mais do que o erotismo em si, o filme explora um sentimento de reciprocidade, de um afã desesperado por aceitação e amor.  Outro aspecto a ser pensado é a da liberação sexual de uma mulher mad

COBERTURA DO 14º FESTIVAL VARILUX DE CINEMA FRANCÊS - EDIÇÃO 2023

MEMÓRIAS DE PARIS Dir. Alice Winocour COTAÇÃO: 8 Link da Crítica:  MEMÓRIAS DE PARIS (2023) Dir. Alice Winocour (cinefialho.blogspot.com) _______________ DESEJO E CIÚME Dir. Catherine Breillat COTAÇÃO: 7   Link da Crítica:  CULPA E DESEJO (2023) Dir. Catherine Breillat (cinefialho.blogspot.com) ________________ CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA Dir. Emmanuel Mouret COTAÇÃO: 8   Link da Crítica:  CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA (2022) Dir. Emmanuel Mouret (cinefialho.blogspot.com) ________________ O LIVRO DA DISCÓRDIA Dir. Baya Kasmi COTAÇÃO: 7 Link da Crítica:  O LIVRO DA DISCÓRDIA (2023) Dir. Baya Kasmi (cinefialho.blogspot.com) _______________ A MUSA DE BONNARD Dir. Martin Provost COTAÇÃO: 9 Link da Crítica:  A MUSA DE BONNARD (2023) Dir. Martin Provost (cinefialho.blogspot.com) _______________ ALMAS GÊMEAS Dir. André Téchiné COTAÇÃO: 5 Link da Crítica:  ALMAS GÊMEAS (2023) Dir. André Téchiné (cinefialho.blogspot.com) _______________ DISFARCE DIVINO Dir. Virginie Sauveur COTAÇÃO: 7

CRÔNICA DE UMA RELAÇÃO PASSAGEIRA (2022) Dir. Emmanuel Mouret

Texto de Marco Fialho "Crônica de uma relação passageira" é uma das gratas surpresas do Festival Varilux de Cinema de 2023. O enunciado sugere algo bobo e superficial, mas na verdade, logo nos primeiros instantes vemos uma história bem narrada, com um roteiro maduro, que muito me lembrou os filmes românticos de Woody Allen dos anos 1990, em especial na maneira como os diálogos foram escritos, com muito sarcasmo, humor e um toque de ironia.  O filme narra a história de Simon (Vincent Macaigne), um homem casado que numa festa aleatória encontra Charlotte (Sandrine Kiberlain), uma mulher que propõe transar com ele sem pensar nas consequências, apenas para se aproveitar o momento, bem no estilo carpe diem de ser. A partir de então, viramos um tipo de voyeur dessa história e começamos a acompanha-la na tela. O mais interessante é que quase todas as cenas do filme se restringem aos encontros desse casal sem maiores compromissos além do carnal e da diversão, até que resolvem inserir

O LIVRO DA DISCÓRDIA (2023) Dir. Baya Kasmi

Texto de Marco Fialho "O Livro da Discórdia" em português, ou "Youssef Salem faz sucesso" em francês, tem como central em sua narrativa discutir os tabus da cultura árabe do protagonista Youssef, um escritor de origem argelina que lança um romance baseado em uma história da própria família. Em seu filme de estreia, a diretora Baya Kasmi realiza uma comédia leve e divertida sobre um tema espinhoso. Apesar de alguns deslizes, em especial na parte final, o resultado é bem interessante.  Uma trama ficcional vinda do livro de Youssef, entra como uma história dentro da história de "O livro da discórdia", mas que ao mesmo tempo se mistura com a própria história do escritor, um tipo de brincadeira que parece aquela máxima  popular "quem conta um conto aumenta um ponto". A narrativa literária desenvolvida por meio de uma voz em off , me remeteu de imediato às obras românticas de François Truffaut (em especial, "O homem que amava as mulheres", de

A MUSA DE BONNARD (2023) Dir. Martin Provost

Texto de Marco Fialho O que mais me chamou a atenção conforme os minutos foram passando enquanto assistia "A Musa de Bonnard" é a paixão pela qual cada ator e atriz do filme defendia o seu papel, o que me levou a considerar que esse amor provavelmente exalava do diretor Martin Provost, do quanto devotou de tempo para burilar cada cena filmada. Essa empolgação salta da tela e nos seduz quase de imediato. É incrível o quanto a trama se sustenta emocionante até o fim, uma das mais belas histórias, dentre várias já realizadas, sobre um pintor francês. Mais uma vez preciso aqui falar do título demolidor em português. O original, é "Bonnard, Pierre et Marthe". Enquanto o brasileiro submete a protagonista ao papel secundário, no original, o protagonismo de ambos é sublinhado, eles são inclusive complementares, além da arte também estar favorecida pelo conhecido sobrenome Bonnard.   Esse é um filme com muitas camadas para serem analisadas. A primeira que pulula aos nossos o

ALMAS GÊMEAS (2023) Dir. André Téchiné

Texto de Marco Fialho Curioso notar como alguns filmes franceses recentes vêm incorporando temáticas que dialogam com vários tabus sociais. Em "Almas Gêmeas", filme dirigido pelo experiente cineasta André Téchiné, o incesto entre dois irmãos torna-se o tabu da vez. A irmã é interpretada pela ótima atriz Noémie Merlant (Retrato de uma jovem em chamas) e o irmão pelo ator Benjamin Voisin (Verão de 1985).  Na narrativa de Téchiné, o jovem David tem um incidente durante a guerra no Mali e perde a memória. Jeanne, a irmã, o acolhe para cuidar de sua saúde debilitada, o que precipita a recuperação de David, apesar de sua memória continuar ainda precisando de uma atenção maior. Se no início do filme tudo indicava que haveria uma relação histórica a ser trabalhada no enredo, logo a seguir essa expectativa se desfaz, para que tudo gire tão somente na relação entre os dois irmãos.  Mais uma vez, temos uma obra francesa autocentrada, novamente circunscrita a uma questão familiar ou de c

DISFARCE DIVINO (2023) Dir. Virginie Sauveur

Texto de Marco Fialho Os tabus religiosos da igreja católica não são um fato incomum no cinema. "Disfarce Divino", dirigido por Virginie Sauveur, é mais um que vem engrossar esse caldo. Tudo começa com um padre que morre e logo se descobre que ele era uma mulher. A partir desse fato, a chanceler da Diocese, Charlotte, passa a investigar o caso para tentar entender como tudo isso pode acontecer.  Mas "Disfarce Divino" não fica por aí. A diretora mistura uma outra história no enredo, a do misterioso caso de paternidade de seu filho adolescente. De repente, junto com Charlotte, entramos em duas histórias envolvendo casos escabrosos e secretos dentro da igreja, todas de conhecimento da cúpula religiosa, que habilmente escamoteia todas elas para evitar escândalos.  O filme de Virginie Sauveur traz à luz alguns assuntos difíceis de serem tratados pela igreja, como o da transgeneridade, a das mulheres serem padres e o do casamento de padres, todos abordados sempre como mui

CONDUZINDO MADELEINE (2023) Dir. Christian Carion

Texto de Marco Fialho A preservação da memória é um dos grandes pilares da cultura francesa, e "Conduzindo Madeleine" se ancora nessa ideia de que os nossos lugares de memória tem um valor tanto individual quanto coletivo. Fora isso, o diretor Christian Carion consegue realizar uma obra que equilibra na justa medida o dramático e o cômico na sua narrativa.  Aqui a simplicidade dá um toque sutil e elegante à história. Na trama, acompanhamos Madeleine, uma senhora de 92 anos a caminho de uma casa de repouso. Tudo é muito cativante, em especial quando ela encontra com Charles, o motorista de táxi nervoso que a guiará até o local que espera ser o último de sua vida. A química entre a atriz Line Renaud e o ator Dany Boon é quase que imediata e eleva o filme a uma expressão única e deliciosa de assistir. Não que "Conduzindo Madeleine" seja um filmaço, mas sim porque ele representa um tipo de cinema que busca, através dos personagens envolvidos, obter um carisma perante ao

ORLANDO, MINHA BIOGRAFIA POLÍTICA (2023) Dir. Paul B. Preciado

Texto de Marco Fialho Mais do que um filme sobre a transgeneridade, podemos dizer que "Orlando, minha biografia política" é um tratado político sobre o tema. A direção de Paul B. Preciado é impecável, criativa e arrebatadora, além de ser pungente do ponto de vista político. Aqui, a poesia de Virginia Woolf se encontra com a militância LGBTQIAPN+, a história com a performance, a causa com a arte. Uma obra irreverente e relevante culturalmente, além de provocativa e profundamente educativa, sem jamais cair em um didatismo frágil ou simplista.  Paul B. Preciado mantém acesso durante toda a projeção um sarcasmo imperdoável e cortante, uma fina ironia perante ao ranço patriarcal da sociedade que não consegue lidar historicamente com pessoas não-binárias. O diretor constrói uma narrativa poética e híbrida, em que o documental cria um amálgama poderoso com a ficcionalização, instaurando a reinvenção e a transgressão como elementos fundamentais para o alicerce de uma nova historicida

O ASTRONAUTA (2023) Dir. Nicolas Giraud

Texto de Marco Fialho "O Astronauta" é no mínimo um filme inusitado, se não na forma, pelo menos na história insólita que narra. A ideia de um amador ir ao espaço parece insana, e na verdade o é mesmo. Esse talvez seja o primeiro desafio que o filme tenha que vencer, a de convencer que essa ideia tenha algo de verossímil. Podemos dizer que essa é uma barreira difícil de ultrapassar, pois mesmo nos ambientes mais controlados do mundo, como o da NASA, colocar um foguete no espaço envolve sempre muito risco e incertezas, as catástrofes já fartamente documentadas não nos deixam mentir. Portanto, se você passou desse primeiro desafio, pode-se dizer que o principal impedimento para assistir a "O Astronauta" foi vencido. Realmente, para mim essa barreira foi intransponível, não me deixou realmente aderir à proposta do filme de Nicolas Giraud. Fiz esse preâmbulo, porque creio que há uma ideia naturalista que embasa a obra, tudo nela foi realizado para que parecesse real, co