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Mostrando postagens de fevereiro, 2024

ZONA DE INTERESSE (2023) Dir. Jonathan Glazer

Texto de Marco Fialho O que mais me impressionou em "Zona de interesse", dirigido por Jonathan Glazer, é a secura e frieza que permeia praticamente todo o filme. No campo da imagem, tudo é exageradamente asséptico e correto. Em plena 2ª Guerra temos uma vida paradisíaca para uma família nazista. Logo na primeira sequência, o diretor mostra essa família se divertindo à beira de um rio, com uma paisagem soberba, com uma natureza intocável, um ambiente bucólico saudável e ótimo para se viver, com uma qualidade de vida invejável para qualquer pessoa. Logo depois, vemos oficiais nazistas felizes por descobrirem uma maneira de otimização, pela arquitetura, de matar e incinerar mais judeus diariamente.    Mas a segunda sequência tudo começa a mudar. Vemos a mesma família vivendo numa casa linda, com uma arquitetura imponente e com traços predominantemente retos. O mais importante a pontuar é o que está por trás dessa linda casa: o extermínio do povo judeu. Se na aparência tudo é tão

ERVAS SECAS (2023) Dir. Nuri Bilge Ceylan

Texto de Marco Fialho Se há algo inconteste perante a qualquer filme dirigido por Nuri Bilge Ceylan é a sua assinatura. Os filmes dele possuem traços bem identificáveis. A sua maneira de narrar é inconfundível. Talvez esse importante e célebre cineasta turco possa ser equiparado artisticamente às narrativas romanescas do russo Fiodor Dostoiévski, em especial pela abordagem preciosista que ambos traçam em torno dos seus personagens, de como enredam psicologia e forte interação com o meio, mais específicamente, como os ambientes influenciam o indivíduo. Outra característica bem latente é a problemática interpessoal, provocadora de crises e embates constantes entre os personagens, além de ser disseminadora de angústias pessoais. O trabalho mais recente de Ceylan, "Ervas Secas", bem comprova isso. O personagem Samet (Deniz Celiloglu), muito lembra um personagem tipicamente dostoievskiano. A sua procura por si mesmo em meio a um mundo caótico, que pouco o compreende, e que ele igu

MEMÓRIA INFINITA (2023) Dir. Maite Alberdi

  Texto de Marco Fialho "Mémória infinita" pode ser entendido como um tipo de documentário que transmite, simultaneamente, uma enorme fé na humanidade e uma melancolia sem precedentes. É ainda um filme caro à história do Chilena, em especial por abordar dois personagens que viveram galhardamente a ditadura de Augusto Pinochet. Augusto Góngora e Paulina Urrutia formam, sem dúvida, um casal apaixonante, ele um jornalista político importante na resistência a Pinochet, ela uma atriz que chegou ao cargo de ministra da cultura no período de redemocratização.  Logo na primeira cena o dispositivo do filme é lançado: ele contraiu o Mal de Alzheimer, ela será a responsável por tentar manter viva a sua memória, que está prestes a desmoronar. O filme é gigante ao conseguir trabalhar com o cruzamento da memória coletiva com a individual. O Chile precisa manter essa memória da luta e Augusto é um dos baluartes dessa memória de luta. Paulina lutará com todas as suas forças por manter a memó

LEVANTE (2023) Dir. Lillah Halla

Texto de Marco Fialho "Levante", dirigido por Lillah Halla, é desde a primeira imagem, um filme sobre a diversidade. A coragem na abordagem vem chamando a atenção e filme já acumula prêmios expressivos como Cannes, Biarritz, Palm Springs, Festival Mix Brasil e Festival do Rio. Nele, a força do feminino pulsa, assim como a sororidade. São essas as energias que exalam de "Levante", um filme realista, que traz para a tela do cinema as lutas contra as intempéries sociais assentadas na intolerância religiosa.  Um dos grandes destaques de "Levante" é o seu elenco feminino e seus corpos diversos. Meninas lésbicas, gordas, pretas, trans e turbinadas formam um empolgado time de vôlei de um clube cuja direção é conservadora, apesar da treinadora não ser. Treinadora, vivida com precisão por uma Grace Passô que acerta em cheio no tom de sua personagem. A história gira em torno de Sofia, uma menina pobre que recebe uma bolsa de estudos para jogar vôlei no Chile. O prob

FECHAR OS OLHOS (2023) Dir. Víctor Erice

Texto de Marco Fialho Víctor Erice talvez seja um dos cineastas de sua geração que menos dirigiu longas. Mas também pudera, os que realizou são valiosos. Antes de "Fechar os olhos", seu mais recente filme, o último trabalho havia sido "O Sol do Marmelo", de 1992, há mais de trinta anos. Nesse interregno, o diretor não ficou no imobilismo, filmou alguns curtas e dividiu direção em trabalhos coletivos, aqueles temáticos em que cada diretor contribui com um curta e a soma deles dá um longa. O azar é todo nosso, apesar que essa paciência pode refletir a qualidade desses quatro poucos longas que vimos em tela nesses quase 60 anos de carreira.   Recentemente, escrevi sobre "O Sul", obra-prima surpreendente, de 1983 (o filme está disponível na plataforma Filmicca e o link para ler o meu texto é esse:  O SUL (1983) Dir. Víctor Erice (cinefialho.blogspot.com) . Mas é melhor irmos direto falar de seu último trabalho, pois deve ter sido isso que o atraiu para este te

PÉROLAS BRASILEIRAS (livro) autora: Mariza Gualano

Texto de Marco Fialho  No cinema, abarcar o todo é uma ilusão, é impossível. Jamais conseguiremos apreender tudo o que está posto em um filme. O cinema é sempre uma experiência limitada, tanto ao olhar de quem fez quanto de quem viu, um recorte sempre parcial, na maioria das vezes, apaixonado, que involuntariamente fazemos. O cinema não pode ser visto por um prisma absoluto, a crítica também não, nem as mais elogiosas ou as mais detratoras. Essa perspectiva cabe igualmente ao ramo da pesquisa sobre ele. A partir de um filme podemos ter tantos pontos de partida que fica até difícil mensurar. Existem análises de historiadores, psicólogos, advogados, pedagogos, sociólogos e tantos outros estudiosos. Mas existe também pesquisadores como Mariza Gualano, especialista em pinçar frases de filmes e compila-las em um novo contexto temático.   E lá se vão muitos anos em que Mariza Gualano se dedica a esse trabalho. São muitos e variados livros de frases que a autora já publicou. O mais antigo que

PERFECT DAYS (2023) Dir. Win Wenders

Texto de Marco Fialho O novo filme do cineasta Win Wenders, "Perfect days" é uma joia incrustrada de brilhantes, onde se precisa observar os pequenos detalhes, para poder se admirar a beleza que dela emana. Pode-se dizer que esta é uma obra sobre os encantos do cotidiano, de como o inesperado habita na mais aparente repetição diária, até mesmo quando esta é obstinada, caso de Hirayama, interpretado com muita sensibilidade e delicadeza pelo ator japonês Koji Yakusho.  "Perfect days" foi indicado ao Oscar na categoria internacional, como representante japonês, afastando "Monsters", de Kore-eda, um dos grandes filmes do ano da briga pela estatueta. Aliás, é bom dizer que esse é um filme japonês do cineasta alemão Win Wenders, conhecido admirador dessa cinematografia e fã declarado de Yosujiro Ozu, diretor que inclusive, Wenders tem um filme inteiramente inspirado por ele, chamado "Tokio Ga" (1985), em que o diretor alemão viaja para Tóquio em busca

OS COLONOS (2023) Dir. Felipe Gálvez

Texto de Marco Fialho "Os colonos", de Felipe Gálvez, antes de tudo, realiza uma excelente síntese sobre o processo exploratório ocorrido na América do Sul, mesmo que o filme seja praticamente todo passado no Chile. Não à toa vem sendo associado aos filmes de faroestes norte-americanos, por se utilizar de conhecidos planos do gênero, como os grandes planos gerais, que abarcam o espaço em sua amplitude, embalados por uma música épica e impactante de Harry Allouche, também muito inspirada nas trilhas dos filmes de faroeste, que acompanha firme essa história dura, importante de ser contada e recontada infinitas vezes.  Na história, três personagens são contratados por um grande proprietário de terra local para abrir caminho para o mar: Alexander MacLennan (Mark Stanley), um soldado travestido de tenente; Bill (Benjamin Westfall), um mercenário norte-americano; e Segundo (Camilo Arancibia), um mestiço bom de tiro, que também serve de guia para a expedição. Segundo é o grande pers

POBRES CRIATURAS (2023) Dir. Yorgos Lanthimos

Texto de Marco Fialho O diretor grego Yorgos Lanthimos recria em "Pobres criaturas" a famosa história de Frankenstein, de Mary Shelley, mas a faz como uma fábula mordaz feminista, imponente na forma e demolidora como enredo. Bella Baxter jamais será esquecida por quem a vê, uma protagonista que renasce no próprio processo opressivo, de mulher aprisionada se torna senhora de si mesma, se reinventando no caminho, em uma autodescoberta de tirar o fôlego. A força selvagem e indomável de Emma Stone como Bella Baxter é completamente arrebatadora.     "Pobres criaturas", baseado no livro homônimo de Alasdair Gray, é o melhor cinema que o exótico Yorgos Lanthimos nos ofereceu em sua carreira. Há bizarrices à moda Lanthimos? Evidente que sim. Mas creio que aqui bem mais controlada e engendrada numa proposta estética e ética mais ampla. Esse é um filme onde a forma se emana ao conteúdo expressivamente. Mesmo que o diretor se ampare e sugue muito de sua obra em Frankenstein, l

NO MEU LUGAR (2009) Dir. Eduardo Valente

Texto de Marco Fialho Agora, em 2024, faz quinze anos que Eduardo Valente não dirige um filme. Depois de rever "No meu lugar", de 2009, ficamos a pensar no quanto o cinema perdeu com este fato. Evidente que Valente continua fazendo cinema de muitas outras formas, que continuam e fortalecem o cinema como linguagem e mercado. Mas isso são para outras conversas e oportunidades. Portanto, vamos voltar à discussão do filme, que é nosso objetivo maior aqui.       O filme propõe uma construção complexa de difícil realização, um dispositivo que permite acompanhar personagens a partir de um acontecimento fatal, que serve como ponto de encontro entre três famílias cariocas em tempos diferentes (embora não tão distantes temporalmente), sem revelações didáticas ou clara delimitação do tempo de cada história. Assim, passado, presente e futuro são expostos em uma única narrativa que recorta o tempo não aleatoriamente, mas com um propósito de refletir elementos do passado e futuro que envol