Texto por Marco Fialho
Boa parte do cinema japonês contemporâneo é marcado pela singeleza. Mas felizmente, esse cinema não vive só de Kore-Eda. Sol de Inverno, é o segunda longa do jovem diretor de 28 anos, Hiroshi Okuyama (que inclusive já colaborou com Kore-Eda numa série), que mergulha na alma de três personagens profundamente humanos e triviais: Arakawa (Sosuke Ikematsu),um professor de patinação artística no gelo; a aluna Sakura (Kiara Nakanishi); e o aluno Takuya (Keitatsu Koshiyama). A beleza dessa obra está exatamente nesse detalhe, revelar a interioridade de pessoas que poderíamos encontrar na esquina de nossa casa.
Sol de Inverno foi exibido na mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes de 2024, e despertou o interesse de dois críticos e cinéfilos brasileiros em adquirir os direitos de exibição no Brasil. Chico Fireman e Michel Simões montaram uma distribuidora, a Michiko Filmes, impulsionados pela beleza de mostrar esse filme ao público brasileiro, que dificilmente teria a oportunidade de conhecê-lo sem a iniciativa deles. Michiko além de ser uma mistura dos nomes dos sócios, também é o nome de uma imperatriz japonesa, enfim, tudo a ver com o primeiro lançamento ser um filme vindo da Império do Sol. Se é coincidência ou não, os dois distribuidores poderão dizer assim que lerem esse texto. Mas o mais importante disso foi a paixão deles se transformar em ousadia, para a nossa felicidade como público e crítico. Afinal, quantas pessoas podem sair do Brasil para assistir a um filme no Festival de Cannes?
Hiroshi Okuyama explora sua história especialmente a partir do jovem Takuya, um menino que não consegue se engajar com sucesso em suas empreitadas esportivas. Desde o início, o diretor alicerça em torno dele possibilidades de beleza, que extrapolam dele para atingir o espectador, como na cena em que ele perde uma jogada no beisebol para admirar a primeira neve do inverno. Como um bom cinema japonês, Sol de Inverno (cujo título internacional é Sunshine) é pensado pelo próprio ciclo proposto pela natureza. O cinema japonês e oriental, por sinal, como um todo é profícuo nessa proposta de inserir personagens em um ciclo da natureza. A trilha musical interage com igual delicadeza, se instaura com um toque acolhedor (inclusive quando toca surpreendentemente uma canção do The Zombies), como se ajudasse a alimentar o afeto que sobressai das imagens.
Curioso como o título brasileiro flerta com o próprio conceito fotográfico do filme, já que em muitos momentos vemos o sol adentrando as cenas frias, no gelo, criando uma atmosfera que evoca o lúdico e o irreal. Muitas dessas cenas tem um olhar de Takuya seduzido pela dança de Sakura, inclusive o olhar dele chega a alterar a luz de uma das cenas, a transformando em um grande quadro solar de Sakura dançando, como se nada mais existisse para ele. Desde o início, Hiroshi Okuyama insiste em mostrar a personalidade dispersiva e quase etérea de Takuya, que se perde em meio a algo que o encanta e o desliga do restante do mundo.
A câmera de Okuyama contém uma sensibilidade extraordinária, ela capta movimentos graciosos das apresentações dos dois jovens patinadores, mas as suas imagens mais fixas são as mais bonitas pela simplicidade. A arte de saber onde colocar uma câmera fixa é sem dúvida algo intrínseco a boa parte do cinema japonês desde o mestre Yasujiro Ozu, mesmo que cada diretor busque sua própria linguagem quando explora esses planos onde a câmera está fixada em um tripé. Essa abordagem, que parte de uma intervenção técnica, confere uma leveza à encenação, cria uma não interferência que permite uma tranquilidade maior para os atores que sabem exatamente qual enquadramento está em jogo. Eu me afeiçoou muito ao cinema japonês por usar essa fixidez da câmera em prol da narrativa e da mise-en-scène.
Sol de Inverno explora bem enquadramentos mais abertos e isso facilita a inclusão da paisagem e de como ela interfere também nas histórias dos personagens. O inóspito da ilha na qual a trama transcorre, perpassa a narrativa e marca as poucas possibilidades que o personagem Arakawa tem de realizar o seu trabalho como professor de patinação. Ele é casado com um rapaz que voltou para a pequena ilha japonesa para assumir o negócio deixado pelo pai, enquanto Arakawa tem poucas perspectivas de trabalho. Esses conflitos não ocupam por demasia a trama, que enfoca mais a relação entre o professor e seus dois alunos.
De certo modo, o filme cria uma expectativa de que ocorrerá uma apresentação artística da dupla de patinadores e isso pode frustrar alguns espectadores, embora ao final essa perspectiva fique em aberto. Um pequeno conflito entra em ação entre o professor e a aluna, que se sente desprestigiada frente a Takuya. Se pensarmos em termos mais gerais, Sol de Inverno tem sim uma queda de ritmo entre o seu primeiro e terceiro terço, mas isso ocorre devido à história estar condicionada à época do ano. A nossa vida não se resume a uma única estação de um ano, ela evidente é muito maior do que isso. O que o filme trata é desse momento, suas possibilidades e frustrações. A vida pensada em suas limitações e o cinema igualmente ao refleti-la. Uma pérola é algo pequeno, mas não deixa de ser valiosa.
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