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Mostrando postagens de janeiro, 2020

FAKIR - Direção de Helena Ignez

Helena Ignez e o desnudar do anedótico Por Marco Fialho Devo confessar que desde que soube que a sempre surpreendente Helena Ignez havia realizado um filme cujo o ponto de partida eram os fakires fiquei com uma sensação de estranhamento sem igual. Ainda na minha infância, lembro de ouvir falar deles, mas sempre sem entender mesmo quem eles eram, em especial porque as explicações que vinham recrudesciam ainda mais minhas dúvidas sobre esses seres. Já na minha vida adulta o fenômeno rarefeito dos fakires pode ter colaborado para o meu esquecimento desses misteriosos seres. Não se tem como negar que em torno da figura de um fakir sempre haverá algo de pitoresco, e a pergunta óbvia do que leva um ser humano a ganhar a vida com provas tão duras, como a de ficar dias sem se alimentar num esquife cuja base são pregos e de quebra cercado por cobras. Quando soube desse filme, sempre imaginei isso: como fugir do pitoresco, do aspecto curioso e ir além, falar de algo a mais dentro desse

A VOZ DA LUA - Direção Federico Fellini

UMA ODE À FANTASIA Por Marco Fialho “A voz da lua” marca o encontro entre o grande diretor italiano Fellini com um dos maiores humoristas da Itália, Roberto Benigni. Só este fato em si já seria um atrativo à parte. Mas claro que o filme é muito mais do que isso. O maior desafio de Fellini nessa obra é o de tirar Benigni de seu registro habitual, o do clown , para pô-lo em uma proposta mais sóbria, entretanto sem perder a dimensão lúdica e circense que Benigni tão bem incorpora a seu personagem, o lunático Salvini. E a sua atuação é surpreendente, carismática, contida e expressiva. Ele é o condutor nesse barco à deriva que Fellini joga errante ao desconhecido mar, ao sabor de suas vagas imprevisíveis.                                        Talvez seja “A voz da lua” o filme onde a relação de Fellini com a fantasia seja a mais visível. É justamente em sua obra derradeira que a camada realidade parece se desmilinguir . Desde a primeira cena, onde uma névoa nos induz ao on

JULIETA DOS ESPÍRITOS (1965) - Direção Federico Fellini

A RONDA DA SOMBRA CONSERVADORA Por Marco Fialho Comecemos pela cor, pois “Julieta dos espíritos” é o primeiro longa-metragem colorido de Fellini. Antes, apenas o episódio filmado em cores para o filme coletivo “Bocaccio 70”. O uso do elemento cor aqui não deve em nada ser desconsiderado, em especial devido à importância que adquire para a atmosfera lúdica na qual Fellini almeja alcançar e a impressão que temos realmente é de que cada cor ali presente foi precisamente pensada. Não são cores estritamente realistas, mas sim unidades de cores dispostas para expressar sobretudo o espírito da personagem Julieta. Fellini preferia fazer filmes em P&B, embora admitisse ser um desafio filmar em cores. Por isso, para ele, o manipular delas era algo fundamental. Fellini foi um diretor que artisticamente almejava obsessivamente retrabalhar a realidade. As cores simplesmente espelhadas da vida se mostravam pobres e instalavam um realismo frágil que extraia as subjetividades dos

A DOCE VIDA (1960) - Direção de Federico Fellini

A monstruosidade da vida moderna Por Marco Fialho “A doce vida” é aquele típico filme onde a denominação obra-prima se encaixa com exatidão. Sua ousadia narrativa ainda hoje surpreende. Uma obra que consegue definir de uma só vez um país e o conceito artístico de seu tempo. Mais do que um filme de autor, “A doce vida” é um filme de seu autor, que demarca seu território e sua originalidade perante a qualquer outro diretor de cinema, um diretor a construir um universo, um mundo próprio, o mondo Fellini.     Uma das sínteses mais instigantes sobre “A doce vida” é a do crítico baiano Walter da Silveira que equipara o brilhantismo cinematográfico do filme com a apreciação da arte dos afrescos nas artes visuais: “Diferentemente do cinema, na pintura, após a contemplação sintética do quadro à distância, é que se passa ao conhecimento analítico de sua composição. Mas, diante dos grandes afrescos, esse método de ver desaparece. Sua amplitude não permite uma primeira visão total:

1917 - Direção de Sam Mendes

Uma bela e anacrônica sinfonia cinematográfica          Por Marco Fialho Quando nos dizem que um determinado filme foi filmado em plano-sequência, ou vários deles, logo penso se a opção faz sentido para aquela obra ou se trata de uma mera opção exibicionista de seu diretor, vide o superestimado "Birdman" (2014), dirigido por Alejandro González Iñárritu. Felizmente, em "1917", não é esse o caso. A ideia do diretor Sam Mendes é bem clara: a de que os espectadores sintam o quanto a relatividade da noção de tempo se faz presente em determinadas situações, em especial quando agimos contra o relógio. Esse artifício cinematográfico da ação de "1917" está condicionada a um prazo temporal que muito me fez lembrar do clássico de western "Matar ou morrer" (1952), de Fred Zinnemann, com a diferença que neste o relógio é um protagonista efetivo da trama e tudo segue essa marcação de tempo. Em "1917", não, assim como os cabos Schofield (George M

OS BOAS VIDAS (1953) - Direção Federico Fellini

Os bezerrões de Fellini “Os boas vidas”, segundo longa solo de Federico Fellini é uma obra fundamental  em  sua filmografia por  representar o início da delimitação do seu universo peculiar.  O título menciona  todos os cinco boas vidas (Moraldo, Alberto, Fausto, Leopoldo e  Riccardo),  todavia o filme é centrado mesmo em Fausto, um deles que por engravidar   a  bela  Sandrina é obrigado a casar-se com ela como reparação do ato. Apesar de uma  aparente felicidade conjugal, o casamento não impede que Fausto continue sendo  um  mulherengo e um farrista inveterado. Todos os boas vidas possuem um arco  dramático  específico e caráter complementares no enredo. Alberto é bonachão e  beberrão ; Leopoldo é o intelectual; Riccardo, um cantor decadente; Moraldo é o  mais  tímido e o mais sonhador. Eles funcionam como escadas para Fausto (Franco  Fabrizi ), realmente o protagonista do filme, personagem no qual tudo vai fluir  e  um canal por onde Fellini vai desfiando sua crítica à burguesia

MONDO FELLINI - Ensaio de Marco Fialho

MONDO FELLINI Texto de Marco Fialho FELLINI E A REALIDADE RECRIADA - ENTRE O LÚDICO E A IMAGINAÇÃO   “Sentir-me obrigado a ser absolutamente fiel a uma história real já me tira o prazer de contá-la. ” Federico Fellini Fellini está entre um seleto grupo de diretores que conseguiu criar um mundo cinematográfico à sua imagem e semelhança. Mais do que conceber um estilo, Fellini concebeu um universo facilmente reconhecível. Ao vermos uma obra sua logo sabemos identificá-la a autoria, logo percebermos que estamos pisando no mundo de Fellini, mais exatamente no Mondo Fellini. Como poucos, ele soube estabelecer as regras desse mundo de tal forma que logo ganhou um adjetivo próprio: felliniano. Claro que hoje esse adjetivo se confunde com a própria Itália, afinal muito desse  mondo tem a cara de seu país de origem. Mas a Itália de Fellini não era propriamente a Itália, mas sim uma paralela, minuciosamente reconstruída pelo Deus Fellini. Esse mondo Fellini espelhava àq