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CONDUZINDO MADELEINE (2023) Dir. Christian Carion


Texto de Marco Fialho

A preservação da memória é um dos grandes pilares da cultura francesa, e "Conduzindo Madeleine" se ancora nessa ideia de que os nossos lugares de memória tem um valor tanto individual quanto coletivo. Fora isso, o diretor Christian Carion consegue realizar uma obra que equilibra na justa medida o dramático e o cômico na sua narrativa. 

Aqui a simplicidade dá um toque sutil e elegante à história. Na trama, acompanhamos Madeleine, uma senhora de 92 anos a caminho de uma casa de repouso. Tudo é muito cativante, em especial quando ela encontra com Charles, o motorista de táxi nervoso que a guiará até o local que espera ser o último de sua vida. A química entre a atriz Line Renaud e o ator Dany Boon é quase que imediata e eleva o filme a uma expressão única e deliciosa de assistir. Não que "Conduzindo Madeleine" seja um filmaço, mas sim porque ele representa um tipo de cinema que busca, através dos personagens envolvidos, obter um carisma perante ao público. E, diga-se de passagem, consegue.

Um dos pontos que mais admiro em "Conduzindo Madeleine" é como Christian Carion amarra as perspectivas individuais às coletivas da França. No trajeto entre a casa de Madeleine e a casa de repouso, nós vamos conhecendo um pouco tanto da história da personagem quanto a de seu país. O diretor, por meio da narração de Madeleine, critica a postura extremamente machista da França dos anos 1950, o papel de submissão na qual a sociedade sujeitava as mulheres, que eram espancadas em casa pelos maridos e ainda corriam o risco de serem presas por tentativa de homicídio em caso de vingança ao agressor. Esse foi o caso de Madeleine, aqui, representante de tantas mulheres que eram sistematicamente violentadas, sem poderem sequer se defender na justiça, já que a lei protegia somente os agressores. 

Venho criticando bastante uma postura recente de parte do cinema francês, que não insere na trama questões sociais, políticas e históricas de seu país, circunscrevendo os problemas abordados sempre em um universo microscópico. Ver um filme sem grandes pretensões, como "Conduzindo Madeleine", fora dessa caixinha, nos enche de felicidade e esperança, de que até o filme médio pode inserir um contexto social ou histórico no enredo. Muitos podem criticar o título apelativo da obra, mas deve-se sublinhar que a referência ao clássico "Conduzindo Miss Dayse" é de responsabilidade brasileira, não da produtora francesa, já que o título original seria "Uma bela corrida", se reportando à viagem do táxi que dá origem à história. 

Cada vez que o táxi de Charles parava em um lugar a pedido de Madeleine, representava um momento em que novas memórias emergiam na trama. Assim, junto com Madeleine, visitamos o absurdo da 2ª Guerra Mundial e da Guerra do Vietnam que vitimaram seus entes queridos. Mas Christian Carion não esquece de rechear sua narrativa com a beleza do jazz a emoldurar as cenas do passado, sempre privilegiando as cantoras da época, que também lutaram para se afirmarem na profissão com vozes fortes e maravilhosas, como Etta James e Dinah Washington. 

Entretanto, a maior força vinda de "Conduzindo Madeleine" está no poder do encontro e das amizades. A relação que se constrói entre Madeleine e Charles é tocante, mesmo que soe um pouco piegas em alguns momentos. Carion sabe modular sua história, ao ir lentamente, cena a cena, oferecendo elementos que vão consolidando a amizade entre os protagonistas e consubstanciando a nossa comunhão com as imagens e músicas que emanam da tela. "Conduzindo Madeleine" é um filme cativante, com uma direção sensível, interpretações delicadas e com carisma de sobra. São 90 minutos de uma narrativa fluida, repleta de empatia e generosidade. O que mais podemos querer de um filme?

Comentários

  1. Perfeito Marco! As relações pessoais não se esgotam em si, dialogam com as transformações históricas e as tensões sociais... Isso aparece cedo, quando Charles da um "corte" no executivo prepotente, que ao mesmo naturalizava a demissão em massa de trabalhadores, tentava manter uma relação subalterna com o que entendia ser mais um servo seu.
    As revelações de Madeleine também serão perneadas por essa documentação dos conflitos de classe e de gênero, com sensibilidade, humor e simplicidade.
    Não há espaço para pieguice na relação dos protagonistas, só muita beleza e humanidade.

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  2. Q posso dizer além do q sempre digo? Adoro teus textos Marco

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