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A MUSA DE BONNARD (2023) Dir. Martin Provost


Texto de Marco Fialho

O que mais me chamou a atenção conforme os minutos foram passando enquanto assistia "A Musa de Bonnard" é a paixão pela qual cada ator e atriz do filme defendia o seu papel, o que me levou a considerar que esse amor provavelmente exalava do diretor Martin Provost, do quanto devotou de tempo para burilar cada cena filmada. Essa empolgação salta da tela e nos seduz quase de imediato. É incrível o quanto a trama se sustenta emocionante até o fim, uma das mais belas histórias, dentre várias já realizadas, sobre um pintor francês. Mais uma vez preciso aqui falar do título demolidor em português. O original, é "Bonnard, Pierre et Marthe". Enquanto o brasileiro submete a protagonista ao papel secundário, no original, o protagonismo de ambos é sublinhado, eles são inclusive complementares, além da arte também estar favorecida pelo conhecido sobrenome Bonnard.  

Esse é um filme com muitas camadas para serem analisadas. A primeira que pulula aos nossos olhos é a da imagem. O trato imagético que o diretor de fotografia (Guillaume Schiffman) afere à obra é precisa, quase sempre pinturas cujos ângulos, volumetria, perspectivas e cromatismo foram estudados para que a nossa experiência como espectador seja plena. E as sutileza dos figurinos (Pierre-Jean Larroque), no ponto certo, perfeitos para cada cena ensejada? Cada adorno e adereço com toques de requinte, vê-se o quanto de cuidado foi tomado para que a época não fosse estrepitosa e sim fluente para quem assiste. Reparem alguns vestidos, em especial um estampado preto que a Marthe (Cécile de France) veste na sacada da casa de campo do casal Bonnard. 

O diretor Provost consegue dar uma pitadas de humor em algumas cenas, o que faz com que o filme tenha um equilíbrio dramático, com doses fortes de drama entremeados com momentos mais cômicos. Um bom exemplo é a cena quase patética da longa discussão entre Marthe e Misia (uma Anouk Grinberg iluminada em todas as cenas) no rio ou do imprevisível ataque histérico de ciúme de seu marido na mesa de almoço. Outra cena hilária é a do primeiro encontro entre Marthe e Renné nas escadas, quando elas se conhecem, sem ainda saberem quem era a outra.  

Um dos pontos positivos da proposta de Martin Provost é de como ele aceita as contradições de seus personagens, em especial a de Pierre, um homem de seu tempo que traz igualmente as marcas dele em seus comportamentos. O machismo está ali presente e o diretor não tenta o camuflar, afinal Pierre é um homem comum da classe média alta francesa, um pequeno burguês em busca de prazeres, mas aficcionado na pintura. Talvez esse seja o filme sobre um pintor onde mais o vemos em ação, embora não se discuta muito sobre os estilos da época, apenas en passant. Pouco se fala da própria importância de Pierre Bonnard para a pintura francesa e mundial, de como ele ficou situado no limbo entre o impressionismo e o modernismo.    

Mesmo assim, Martin Provost foi muito feliz em amarrar o contexto histórico, e principalmente o artístico em "A Musa de Bonnard". E o fez com sabedoria, por meio de encontros com artistas importantes para a vida de Bonnard e para as artes francesas, como a célebre e influente pianista Misia, uma típica feminista exuberante, cheia de personalidade, com vontade de lutar e buscar um homem que a fizesse feliz, nem que para isso os trocasse a todo momento que julgasse necessário. Um dos destaques do enredo é a bonita relação entre o casal Bonnard e o casal Monet, com Claude sempre muito atencioso a Marthe, em que se aproveita para se discutir sobre as relações de casais, cada vez mais desgastadas socialmente. Entretanto, há uma beleza nisso quando surge Renné, a bela jovem que vem tomar de assalto o coração de Pierre. Marthe ao sentir tudo indo ladeira abaixo, não se deixa intimidar e propõe uma relação a três, o que ao fim não dá tão certo assim, como era de se imaginar. 

E voltando às contradições que o filme expõe, é bom lembrar que por mais que Marthe tenha uma personalidade fortíssima, vê-se ainda um papel submisso dela com Pierre, de ser aquela que se sacrifica para a carreira dele decolar. Mas o mundo a vê como algo maior, como uma mulher inspiradora, que traz uma luz inconteste por meio das obras de Pierre. Mas o mérito de Provost está em jogar o foco de sua narrativa no casal, até mais em Marthe, na beleza interior que ela emana cena a cena, na resiliência, no amor verdadeiro, na entrega nem sempre correspondida pelo marido. O diretor Provost, que também é coroteirista, sabe trabalhar nos dois personagens, mergulha neles com vontade. Há um diálogo crucial entre Pierre e Marthe, quando ela pergunta porque as mulheres posavam para os homens as pintarem? E ele a responde que era assim porque as mulheres não pintavam, só os homens. Claro, que o filme está a discutir aquela época específica, o começo do Século XX e até mesmo a realidade do século XIX na França. Esses questionamentos são fundamentais, ainda mais quando logo depois veremos Marthe se arriscando na pintura e conseguindo posteriormente expô-las em uma galeria de arte. Mas essa verve artística só pode se desenvolver na medida em que Pierre a abandona para casar com Renné.

Outra camada que vale à pena destacar é a da família de Marthe. A inserção dessa família (formada basicamente por mulheres: mãe, irmã e sobrinhas) na trama do filme, é importante para situar o papel social da mulher na França daquele período. Além do casamento ser a maneira mais corriqueira para a ascensão, ou mesmo para a sua manutenção, outra possibilidade era a prostituição ou o serviço doméstico. Essa é uma discussão importante, já que Marthe tenta caminhar por outro caminho, inclusive a de juntar ao invés de casar (o casamento entre eles só vem bem mais tarde). Socialmente, a situação conjugal de Marthe não era bem aceita e havia um ressentimento dela com Pierre porque as modelos eram vistas como objetos a serem desfrutados pelos artistas, seus corpos não eram respeitados para além do sexual e da objetificação. Marthe se incomodava em sentir que o seu papel de modelo suscitava desejos carnais em homens, e até mulheres. Não é uma questão de se sentir desejada, mas sim de se sentir objetificada, o que é bem diferente. Mas a maior beleza é como Marthe via a sua relação com Pierre como algo mais estimulante e isso a fez incentivar o pintor a ir para o campo. Ela trazia um romantismo acentuado e esse foi também o seu calvário.                                              

E o que dizer da química do casal Marthe e Pierre Bonnard (Vincent Macaigne)? Há um respeito mútuo nessas interpretações, um devido espaço para que os brilhem tanto juntos quanto separados. Talvez a palavra ideal a ser dita não fosse química, mas sim tempero. A impressão que fica é que Cécile de France e Vincent Macaigne bailam nas cenas e sobre o roteiro. Há uma beleza contagiante presente em cada aparição, ora eles sugerem uma poção de alecrim quando estão à cama, ora de manjericão quando se jogam pelados no rio, ora um pouco de sal quando Pierre pinta, de pimenta quando Marthe fica enciumada e uma pitada de orégano, sim, aquele que tem o dom de perfumar uma boa pizza, quando Marthe pinta seus quadros. E sem contar no aroma da sálvia que sentimos quando vemos Martthe doente. As duas horas de filme são degustadas como uma baita refeição cinematográfica, como um menu para ser apreciado prato a prato, ou melhor, cena a cena. "A musa de Bonnard" é uma delícia de prato cinematográfico.          

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