Texto de Marco Fialho
Há filmes que trazem como temática a morte e a vida, e há outros que colocam no centro da discussão os traumas. Esse é o caso de "Memórias de Paris". Não é uma obra sobre um atentado, que questiona suas motivações, mas que aborda as consequências que provoca na vida de quem sobreviveu a esse ato violento. O atentado instaura uma impessoalidade feroz, quem é afetado por ele, na maioria das vezes não entende o que levou uma pessoa ou grupo a um ato de tamanho irracionalidade.
A diretora Alice Winocour conduz tudo com maestria ao centrar a sua investigação sobre trauma a partir da personagem Mia, uma sobrevivente que perdeu parcialmente a memória acerca do fatídico acontecimento. Esse estratagema é perfeito, para que Winecour trate o roteiro de maneira fragmentada, tal como os estilhaços da vitrine do bistrô atacado por um homem fortemente armado. O mais brilhante é a constatação, cena a cena, de que jamais teremos a história reconstituída, e que nosso conhecimento do atentado é o mesmo de Mia, sempre incompleto. O filme é sobre essas memórias que não sabemos onde estão, formadas por cacos de vidro impossíveis de serem juntados. Por mais que esse jogo dramático se assemelhe a um quebra-cabeças, não se trata de tal, pois as peças indisponíveis são mais numerosas do que as que estão disponíveis, o que inviabiliza em si o jogo.
A diretora assim consegue, gradativamente, mostrar a dimensão dessa dor, ou melhor, se esforça por esboçar o quanto é difícil para o outro dimensioná-la. Esse é um filme também sobre o outro, sobre nós que ficamos sabendo dessa dor sem jamais realmente saber precisar a sua real amplitude. O recomeçar é mais do que uma tarefa simples, é o muro a ser transposto. Atravessar parece fácil para quem não vivenciou o drama, mas como será para quem esteve presente na hora do incidente e sentiu o quanto indefeso e impotente, se defrontou com o fio tênue existente entre a vida e a morte. O trauma é sobre isso, a constatação de que não controlamos absolutamente nada.
Mas "Memórias de Paris" não para por aí. Mostra que por trás de um acontecimento retumbante pode se revelar minúcias e aspectos sociais que estão escamoteados no cotidiano de uma grande cidade, como o caso dos imigrantes ilegais, vindos de vários países da África, como Mali e Senegal. Winocour amarra bem essa questão quando Mia procura por um homem negro que a salvou na hora do atentado, que segurou a sua mão e a acalmou. Esse fato promove o encontro entre duas pessoas que no dia a dia sequer trocariam olhares, mas que na ocasião fazem a humanidade emergir em gigantes gestos ocultos nos atos mais simples, como o de segurar a mão, de fazer acreditar e de tranquilizar que eles não morreriam em meio aquela tragédia.
A atriz Virginie Efira impressiona no papel de Mia, pela imensa sensibilidade com que registra uma dor que a própria personagem não consegue entender. Esse espaço de incompreensão é fundamental para que partilhemos com ela de suas dificuldades e esforços para poder voltar a viver. O passado não se apaga, mas tem uma cena fantástica que acontece depois de uma cerimônia em homenagem aos que morreram e aos que sobreviveram no atentado. Várias pessoas levam lembranças, flores, acendem vela e vão juntando tudo no chão da praça. À noite, quando tudo terminou e a praça está vazia, Mia vê os lixeiros retirar toda aquele amontoado de coisas da rua, o que a faz pensar da nossa relação com o passado, da necessidade também de fazermos uma faxina nele, até por uma questão de sobrevivência.
Além de abordar a memória dos que viveram o acontecimento, Winocour lembra da dor de quem não passou pela tragédia, mas perdeu seus entes queridos, como o casa da menina que perdeu os pais, após eles verem uma exposição de Claude Monet, último feito antes de irem ao bistrô. A cena em que a menina encontra com Mia no mesmo museu é tocante de tão verdadeira que é. A diretora, acertadamente, decide contar a história do ponto de vista de Mia, sem perder de vista que existem outras perspectivas que igualmente agregam muito a sua narrativa.
É bastante marcante algumas ironias presentes no filme. Uma delas acontece quando Mia depois de uma longa busca, encontra o senegalês que a ajudou no bistrô, um refugiado ilegal que tenta sobreviver na inflacionada cidade Luz. Esse encontro revela as próprias contradições da sociedade parisiense, já que o rapaz, por puro sarcasmo, vende estátuas iluminadas da Torre Eiffel. Esse é um discurso audiovisual que está no filme, mesmo que não seja marcadamente um discurso direto, mas está lá nas imagens, para não restar dúvidas sobre isso.
Porém, a força de "Memórias de Paris" reside na constatação de que para se superar um trauma do passado é necessário viver o presente, encarando a dor de frente, deixando que a vida lhe apresente novas flores no caminho, algumas nascidas do próprio processo e vivência do trauma.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!