Texto de Marco Fialho
O veterano diretor finlandês Aki Kaurismäki realiza em "Folhas de Outono" um dos melhores filmes de sua longeva e bem-sucedida carreira. O diretor narra a história de Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen), dois personagens solitários em busca de afeto em um mundo hostil.
Inspirado pela frieza do mundo, Kaurismäki narra a história abusando do uso de planos fixos, em que a imobilidade da câmera expressa como os personagens se sentem diante do mundo. Em contraponto a essa frieza, Kaurismäki valoriza o âmbito da interpretação dos atores não por eles, mas com uma câmera que sempre privilegia mostra-los por meio de enquadramentos que os destacam na cena. Com isso, o destaque maior para o diretor é a própria cena.
A fotografia de "Folhas de Outono" forja uma imagem límpida, com cores chapadas, que em contraste entre si tornam-se vívidas. Assim, o diretor abusa do vermelho, azul e cinza, brincando com elas em um jogo constante entre o fundo e o primeiro plano, mas sempre mantendo um tom levemente pastel. São imagens cheias de esperança, que emanam uma energia positiva, uma crença que o cinema pode criar um mundo onde as cores estão sempre a serviço da beleza e da harmonia. O toque de vermelho está sempre a simbolizar a possibilidade do amor.
O próprio cinema pode ser considerado também como uma de forma de amor na narrativa de Kaurismäki, tanto que é na própria porta de um cinema onde alguns dos encontros entre o casal Ansa e Holappa acontecerão, e o diretor faz questão de ilustrar essas cenas com cartazes de filmes famosos e de diretores representativos da história do cinema, como John Huston, Bresson, Godard ou Visconti. E o que dizer quando Ansa adota uma cachorrinha e a batiza de Chaplin. O amor para Kaurismäki realmente é um sinônimo para cinema e tanto faz que o filme seja um clássico ou de zumbi, como o que o casal assiste em uma das sessões.
Mesmo que o personagem de Holappa seja bastante singular, preso ao alcoolismo e rebelde no trabalho, há algo que nos convida a se apegar a ele, principalmente por Holappa possuir uma energia de quem quer buscar o amor, e logicamente, algum sentido para a sua vida. O mesmo acontece com Ansa, torcemos para ela se encontrar no mundo, mesmo que a solidão pareça ser algo inerente a sua personalidade, algo parecido a uma sina irrevogável. São personagens que vivem na simplicidade, sem luxo, daqueles que poderíamos encontrar na esquina de nossa casa. São trabalhadores que tentam salvar o que podem no cotidiano de uma vida dura.
Se inicialmente Kaurismäki sugere que o filme será sobre o mundo do trabalho, aos poucos deixa a história de amor tomar conta de sua trama. Um dos elementos que mais permite que isso aconteça é a relação que o diretor estabelece entre os personagens e a música. As letras e as melodias das canções casam com a história, dialoga diretamente com ela, além de colaborar para suavizar a própria narrativa. A música também surge na exibição de um karaokê, com direito a uma deslocada música de Franz Schubert.
Kaurismäki arranca com a habitual categoria, uma secura que já vem construída desde o roteiro, mas que espraia pelas interpretações e por uma montagem que não dá espaço a excessos. "Folhas de Outono" extrai sempre o mínimo dos atores e o essencial de cada cena, deixando apenas um toque de exagero e certa exuberância para a cenografia e a fotografia. Ainda tem os toques de política exterior, com os rádios noticiando massacres na Guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que vão permeando esse mundo insosso, violento e sem esperança. Mas eis que Ansa, em uma cena desliga o aparelho como uma nítida maneira de protestar contra esse mundo da discórdia e do desencontro. E ela faz isso também como uma atitude própria perante à vida, como uma tomada de posição para transformar sua vida perante a mediocridade do mundo e a incompetência do macro para o diálogo e o entendimento.
"Folhas de Outono" é um tipo de manifesto de Kaurismäki para os espectadores, de que podemos fazer algo pequeno mas efetivo frente ao absurdo da guerra e da incompreensão. Os corpos dos personagens estão ali à disposição de Kaurismäki, como se suas presenças representassem um protesto contra o automatismo do mundo. E o diretor, dentro do seu estilo econômico consegue extrair um humor de muitas situações, ora com diálogos cortantes ora com um deboche incontido expresso na própria mise-en-scène.
Os encontros e desencontros do possível casal a ser formado, passeia pela narrativa, em um ambiente onde as emoções não são tão intensas. O desamparo dos personagens é latente, as imagens que Kaurismäki realiza deles são quase desoladoras. O mundo é desolador, jamais eles. Há um humor meio ácido, mas que o diretor cuida para preserva-lo implícito e singelo, pois o controle dele da narrativa é total. Tudo aqui é sóbrio e calculado, apesar do diretor conseguir um espaço para que haja uma gota de emoção a emoldurar essa frieza da vida contemporânea ensejada pelo capitalismo. Se o mundo nos quer gélidos, Kaurismäki nos mostra que pode existir amor até mesmo no improvável dia a dia. Essa é a magia seca de seu cinema, conseguir extrair, nem que seja um leve sorriso, que se equivale a um troféu conquistado, de um de seus personagens, tal como a vida faz com a gente em seu árido cotidiano.
Excelente análise. Acabei de ver o filme e vim procurar tua crítica.
ResponderExcluirGostei muito do filme. Fica explicito que existe uma espécie de segunda classe na vida.
Obrigado Elizabeth! Pode parecer exagero, mas eu recomendo todos os filmes desse diretor. Atualmente, plataforma MUBI exibe quase todos os filmes dele. Todos sensacionais. Impressionante.
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