Texto de Marco Fialho
"Monster" é um Kore-eda voltando à velha forma. Um dos pontos altos do filme é a montagem, que costura com requinte uma trama repleta de mistérios que aos poucos vai sendo revelada. O roteiro de Yuji Sakamoto tem uma inspiração "Rashomon", a obra-prima de Akira Kurosawa, em que vamos conhecendo os acontecimentos por meio de pontos de vistas diversos, que aqui transformam-se mais em perspectivas, já que o tom confessional do clássico de Kurosawa não existe em "Monster".
No começo ficamos um pouco perdidos, sem saber qual seria o protagonista do filme. Alguns personagens vão participando de acontecimentos, assim acompanhamos Minato Mugino (Soya Kurokawa), Saori Mugino (Sakura Ando), a diretora da escola (Yuko Tanaka), o jovem professor Sr. Hori (Eita Nagayama) e o colega de turma Yori Hoshikawa (um ótimo Hinata Hiiragi). Em um certo ponto, voltamos na história para conhecermos a visão de um certo personagem. E essa estratégia narrativa proposta por Kore-eda nos revela novas facetas da história. Com isso, o diretor se utiliza de mecanismos cinematográficos para nos mostrar o quanto nossa visão é sempre limitada, que só nos é possível acessar parte, ou partes, ou ainda, se preferir, ângulos diversos de uma mesma história.
Kore-eda começa a sua abordagem explorando a mudança de comportamento apresentada pelo jovem Minato, que diz que Hori, o professor, está o agredindo fisicamente. Então enxergamos a história do ponto de vista da mãe. Mas a verdade é que a cada nova perspectiva narrada vemos uma expansão do universo da trama, o que torna o todo cada vez mais complexo e com mais camadas a serem contempladas. É o mundo das aparências sendo desmontado pelos novos ângulos e perspectivas.
Com o tempo se revela que o professor Hori não era exatamente um agressor, mas que existia uma estrutura na instituição escolar que abafava os problemas cotidianos, para que não houvesse uma evasão e uma consequente perda financeira do colégio. Nesse momento, somos apresentados a um das questões mais complicadas do ambiente escolar contemporâneo: o bullying. Essas práticas de violência entre jovens, de certa maneira são acobertadas no dia a dia das escolas, em que as vítimas ainda são punidas pelas instituições escolares. Mas Kore-eda não se restringe a analisar a violência desses contextos, penetra igualmente nos frágeis e desestruturados núcleos familiares e como isso impacta na estima dos estudantes.
Kore-eda não para somente na análise familiar, algo que se delineia como o grande alicerce temático de sua obra. Agora, o diretor adentra na manifestação da sexualidade, esse terreno tão difícil para os jovens, que normalmente pouca informação possuem sobre um tema que ainda é forte tabu social. Não por acaso, Kore-eda deixa para o final a perspectiva de Minato, já que através dela vai explorar mais que suas descobertas, as frustrações de quem é reprimido em seus desejos, a ponto dele dizer que jamais teria felicidade na vida. A trama LGBT é muito bem perpetrada pela direção, ela chega delicadamente, mas jamais com pudor, sempre de maneira honesta e poética.
"Monster" é um drama com tintas razoavelmente fortes, mesmo que a sutileza da narrativa suave e bem desenhada por interpretações sensíveis de cada um dos atores e atrizes, crianças ou adultas. A condução dramática de Kore-eda a todo instante flerta com o melodrama, o atualiza e o refina como só os grandes artistas sabem fazer. Essa é uma narrativa estilosa, de bom gosto, sofisticada, atenta à profundidade que cada cena pode acrescentar ao todo.
Sem dúvida, o ápice de "Monster" está nos momentos em que a relação entre Minato e Yori se evidencia e só cresce dentro do enredo. São cenas tocantes, que só Kore-eda poderia filmar com sua extrema sensibilidade. Essas cenas mostram o quanto que o amor está estritamente ligado à amizade, o quanto que a cumplicidade não está só nas ações, já que a sociedade volta e meia obrigou Minato a maltratar Yori (e esse entendeu que ela fazia parte do contexto de agressão no qual estavam ambos inseridos).
Não é de hoje, que o cinema de Kore-eda vem demonstrando o quanto ele pode ser humano e atento a um grau elevado de realismo sem portanto se curvar inteiramente a ele. A fantasia sempre permeou suas obras e esse é o carimbo que marca a sua autoralidade. Minato e Yori encontram o amor na fantasia, em um vagão abandonado no meio de uma mata quase paradisíaca, pois aquele era um lugar simbólico, onde eles podiam ser quem eles verdadeiramente eram e isso é a beleza desse filme, permitir que a felicidade de alguma forma acontecesse. Sim, a mesma felicidade que Minato temia jamais encontrar.
Mas ainda sim fica a pergunta: quem é monster nessa história? Kore-eda consegue contornar o tema com extrema habilidade, cena a cena, perspectiva a perspectiva, sendo bastante efetivo em sua proposta. Ao final o diretor mostra o quanto cada um dos personagens possuía suas fragilidades, até a diretora, que parecia um muro intransponível, revela sua fraquezas no decorrer da narrativa. Kore-eda, então, traça um perfil social profundamente conservador e desnuda os mecanismos de perpetuação dos preconceitos, como eles se arraigam nas famílias e no cotidiano das escolas. O bullying, nada mais é que o instrumento desse conservadorismo, a face mais cruel e visível de uma sociedade que vive de aparências, mesmo que na sua essência seja excludente e preconceituosa.
Belíssimo filme! Trilha sonora encantadora. Permaneço intrigada com a parte final: o entrecruzamento do encontro entre Saori e o Sr. Hori na busca por Minato, o 'resgate' de yori na banheira, e o desfecho qdo as crianças deixam o vagão abandonado passando por debaixo do canal. Afinal, nada daquilo existiu? Ou, seria a vez do expectador descrever sua perspectiva?
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