Texto de Marco Fialho
Os tabus religiosos da igreja católica não são um fato incomum no cinema. "Disfarce Divino", dirigido por Virginie Sauveur, é mais um que vem engrossar esse caldo. Tudo começa com um padre que morre e logo se descobre que ele era uma mulher. A partir desse fato, a chanceler da Diocese, Charlotte, passa a investigar o caso para tentar entender como tudo isso pode acontecer.
Mas "Disfarce Divino" não fica por aí. A diretora mistura uma outra história no enredo, a do misterioso caso de paternidade de seu filho adolescente. De repente, junto com Charlotte, entramos em duas histórias envolvendo casos escabrosos e secretos dentro da igreja, todas de conhecimento da cúpula religiosa, que habilmente escamoteia todas elas para evitar escândalos.
O filme de Virginie Sauveur traz à luz alguns assuntos difíceis de serem tratados pela igreja, como o da transgeneridade, a das mulheres serem padres e o do casamento de padres, todos abordados sempre como muita descrição pelas autoridades religiosas católicas. Lentamente, a diretora vai desfiando esse rosário complicado e espinhoso, o que torna a narrativa às vezes um pouco monótona e sem sair muito do lugar. O filme lembra muito o ritmo de uma oração, tal como o título original (Magnificat) inspira, como uma cantilena que precisa ser dita e cantada pacientemente do início ao fim.
A personagem de Charlotte (Karim Viard) centraliza em torno dela todas as ações do filme. Para os católicos mais ortodoxos, a trama pode incomodar, já que o filme expõe temas considerados tabus pelo catolicismo. O papel da mulher nesta religião é posto à prova, assim como a diretora consegue levantar discussões importantes como a participação das mulheres como diaconisas a partir da gestão do Papa Francisco. A questão sexual está igualmente presente no filme, afinal, o que fazer quando a atração entre padres, freiras e fiéis acontece. E quando o ato é consumado e nasce uma criança? Esses são exemplos de perguntas que a diretora não foge e resolve enfrentar em seu filme.
Se a discussão do corpo transgênero já é um tabu em quaisquer esferas da sociedade, imagina na igreja, onde os dogmas são na maioria das vezes intransponíveis, principalmente no topo da hierarquia da instituição católica. Se "Disfarce Divino" tem méritos, um deles é encarar de frente a discussão, tendo Charlotte como um importante veículo nessa diretriz. Se o filme se arrisca pouco na sua proposta narrativa, ele vence os desafios temáticos que levanta por meio de uma câmera discreta em sua movimentação e com uma fotografia inspirada em alguns momentos, que consegue transmitir o calor na medida certa. Há uma rápida homenagem ao mestre Bergman, quando o filho adolescente toca em uma imagem ampliada do pai, evocando "Persona" de Bergman, em que há uma cena muito parecida.
Porém, essa é uma história que atinge os subterrâneos da igreja e a diretora Virginie Sauveur mostra ter consciência disso e realiza um filme onde as surpresas aparecem quando menos se espera. A discrição dos elementos cinematográficos se relaciona com os substratos temáticos e esse casamento cozinha o filme em banho maria, chegando até a dificultar a sua fluidez narrativa. Muitos dos diálogos são realizados ao pé do ouvido, quase sempre a dois, pois segredos nunca são ditos em voz alta ou para muitos.
Se na superfície "Disfarce Divino" transmite uma certa ideia de pasmaceira, em suas entranhas o filme está fervendo e corroendo as paredes intestinais dos dogmas católicos. Há um nítido paradoxo entre o que é dito e o que é visto. Mas é ao final que o mais improvável vem à tona: depois de vermos um filme todo assentado em elementos factuais, assistimos um desfecho surpreendente, fruto do delírio da protagonista, um sinal de que a fé deve sim remover as montanhas e plantar os sonhos mais intangíveis do presente.
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