Texto de Marco Fialho
Curioso notar como alguns filmes franceses recentes vêm incorporando temáticas que dialogam com vários tabus sociais. Em "Almas Gêmeas", filme dirigido pelo experiente cineasta André Téchiné, o incesto entre dois irmãos torna-se o tabu da vez. A irmã é interpretada pela ótima atriz Noémie Merlant (Retrato de uma jovem em chamas) e o irmão pelo ator Benjamin Voisin (Verão de 1985).
Na narrativa de Téchiné, o jovem David tem um incidente durante a guerra no Mali e perde a memória. Jeanne, a irmã, o acolhe para cuidar de sua saúde debilitada, o que precipita a recuperação de David, apesar de sua memória continuar ainda precisando de uma atenção maior. Se no início do filme tudo indicava que haveria uma relação histórica a ser trabalhada no enredo, logo a seguir essa expectativa se desfaz, para que tudo gire tão somente na relação entre os dois irmãos.
Mais uma vez, temos uma obra francesa autocentrada, novamente circunscrita a uma questão familiar ou de casal, aqui podemos até escolher. Téchiné aposta na qualidade dos protagonistas para avançar a narrativa de "Almas Gêmeas" e ambos correspondem plenamente. Merece um destaque também o ator André Marcon (O Oficial e o Espião), que interpreta Michel, o estranho e recluso proprietário que aluga a casa em que os irmãos moram. A personalidade marcante dele aviva o filme em alguns momentos, pelo seu gosto inusitado de vestir-se com roupas femininas e maquiagem. Ele anuncia aos irmãos que venderá a residência, um dos pretendentes é uma imobiliária que quer construir um condomínio luxuoso de casas no local, o que irrita Michel.
Essa parte mais crítica do filme não se amplia tanto como poderia, pois a discussão sobre o avanço capitalista pela especulação imobiliária renderia ótimas discussões e levaria a história para lugares mais interessantes. Infelizmente, Téchiné resolve voltar o enredo para o drama dos irmãos. David realmente sofria de amnésia como dizia ou queria recomeçar a vida sob novos ares? Essa dúvida levamos para casa, não nos é dada acessar. Podemos ignorar o passado e recomeçar todos os dias do zero ou muito próximo disso? Essa é mais uma pergunta que o filme nos faz.
O filme caminha sempre no fio tênue entre o passado, que David quer esquecer e o futuro incerto, onde tanto Jeanne quanto David precisam começar do zero. As pinturas rupestres das cavernas da região servem de aviso que o passado nem sempre é fácil de ser apagado. "Almas Gêmeas" às vezes se perde em explicações científicas sobre a memória, perdendo de vista que a maior contribuição que a obra poderia fornecer seria o impacto dessa memória na vidas dos personagens. Será que saber sobre o funcionamento do processo da memória realmente se revelou o melhor caminho a ser traçado pela direção? Ou o mais instigante seria interrogar como a memória impacta e transforma as vidas de cada um?
O filme de Téchiné termina por trabalhar mais com a exterioridade dos personagens do que com a interioridade, o que dificulta bastante a nossa relação enquanto espectadores com os personagens, por trazer um distanciamento vazio à trama. Há um objetivismo no roteiro que não deixa espaço para que realmente se adentre nas maiores angústias dos personagens. Téchiné parece fissurado na fixação de David por Jeanne, mas esta é uma temática que vai se desgastando cena a cena e não consegue se sustentar, e nós como público vamos perdendo o interesse nos personagens. Essa é a maior sensação que fica ao final da projeção.
Pôxa, meu faro anda bom. Filmes têm servido como luxuoso entretenimento catártico para os próprios diretores desde quando?... Boas críticas ampliam a qualidade de um trailer sedutor e nos abrem espaço para o que de palpável possa existir.
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