Texto de Marco Fialho
Ridley Scott é um típico realizador da mega indústria de Hollywood. Produziu, roteirizou e dirigiu dezenas de projetos cinematográficos desde os anos 1960, quando deu início a uma carreira sólida, com sucessos de crítica e público incontestáveis. Como diretor fez obras magníficas do cinema, como "Alien, o oitavo passageiro" (1979), "Os Duelistas" (1977), "Blade Runner" (1982) e "Thelma & Louise" (1991), além de bons filmes como "Gladiador" (2000), "Chuva negra" (1989) e "O gângster" (2007), mas teve lá os seus fracassos como "Prometheus" (2012), "Cruzada" (2005) e "Casa Gucci" (2021). Evidente que podíamos citar outros filmes que ficaram aqui de fora, mas apenas queria pontuar como a carreira do diretor foi marcada pela instabilidade criativa, algo bem comum a um artista que muito filmou durante os últimos 50 anos.
"Napoleão", o seu mais recente trabalho, produzido para a Apple TV que inclusive em breve vai exibir o filme completo, já que a versão do cinema é apenas uma montagem do que será exibido na íntegra no streaming da empresa, entra para o hall dos filmes problemáticos do diretor, que diga-se de passagem, sempre aceitou que distribuidoras e produtoras metessem a tesoura em suas obras, as modificando ao seu bel-prazer. "Napoleão" traz uma visão histórica bastante defasada e retrógrada, e olha que não digo isso pelo estranho fato do filme ser todo falado em inglês, mas sim porque "Napoleão" esbarra numa concepção episódica da história, mal dissimulada, e numa insistência em abordar fatos históricos por um viés reducionista, cujo enfoque se restringe às intrigas palacianas francesas e envolvendo apenas reis e imperadores estrangeiros.
Essa é uma visão histórica de cunho profundamente conservador, a de estimular que a história seja vista apenas como resultado de grandes feitos realizados por personagens idiossincráticos ou rebeldes. Ridley Scott cai nessa armadilha e proporciona para o seu "Napoleão" mais do mesmo, tanto do ponto de vista cinematográfico quanto histórico. Não que seu filme só enalteça a figura de Napoleão, até pelo contrário, a torna na maioria das vezes patética em muitas ocasiões, sanguinária em outras, mas vende essa ideia falsa de que a história é feita somente com a ingerência de homens fortes, valentes e poderosos.
O maior problema do "Napoleão" de Ridley Scott é que algumas perguntas básicas ficam de fora da abordagem do diretor: afinal quem estava por trás dessa grande figura histórica e qual classe estava a se beneficiar de suas guerras ambiciosas e prepotência? O que essa figura histórica representou para a revolução francesa, esse grande evento que derrubou o Antigo Regime para instaurar o Estado Burguês na França, mesmo que depois tenha havido um período de novo retrocesso após a instauração do Congresso de Viena, em 1815, que marcou o último suspiro do Absolutismo na Europa? É vendida uma imagem de Napoleão como se ele fosse um idiota, ensimesmado e apenas preocupado com a esposa e com as batalhas. Entretanto, Napoleão foi importantíssimo para a consolidação da burguesia francesa, aperfeiçoando o sistema financeiro. O ideal expansionista poderia até ser um traço da personalidade militarista de Napoleão, mas longe de dizer que ele era um autocrata que governou acima de todas as classes. Era um típico político burguês, idiossincrático e desprezado pelos políticos aristocráticos que se incomodavam com o seu jeito grosseiro e nada refinado.
Ridley Scott, como um bom historiador conservador, se preocupa em demarcar as datas, os marcos temporais (não as fases da revolução, inclusive nem chega a nomear o golpe do 18 Brumário), sem jamais contextualiza-los historicamente, apenas cita ou impõe a imagem de reis e príncipes como pedra fundamental da história. E o povo, nesse enredo, logo ele, responsável que foi pela derrubada da Rainha Maria Antonieta (vista como uma mera rainha decapitada), cadê ele? Inclusive, a cena da derrubada da monarquia, e sua subsequente execução, foi muito mal filmada do ponto de vista histórico. Tudo ali parecia algo improvisado, vai lá e decapita a rainha má. Mas a coisa não foi bem assim, pois a queda da monarquia se efetivou pela revolta dos esfomeados e teve toda uma cerimônia, que não foi imediata à sua prisão. A sua decapitação era algo emblemático demais, não uma formalidade banal como o filme quer mostrar, houve um ritual, um julgamento até o espetáculo público.
O filme de Ridley Scott infelizmente passeia pelas intrigas palacianas, ou melhor dizendo, por dentro das relações entre Napoleão e a amada Josefina (Vanessa Kirby). Ao se prender nesses fatos, o que o roteiro demarca é a personalidade exótica de Napoleão, as maneiras insólitas e grosseiras pelas quais dirigia tanto o palácio quanto o próprio país. Joaquin Phoenix por sua vez representa bem esse papel de um Napoleão melancólico, irascível e carente emocionalmente da esposa, que por sua vez o trai, o provoca e também sofre em suas mãos perversas, em especial por não lhe dar um filho. As cenas envolvendo Vanessa Kirby são as melhores do ponto de vista dramatúrgico. Sua aparição é sempre instigante como atriz, que não busca uma fidelidade, mas sim fazer uma leitura contemporânea da personagem, mesmo que essa visão cotidiana misturada com a questão histórica seja complicada, na medida em que no filme alguns fatos históricos são condicionados diretamente à questões da vida privada do imperador.
As batalhas são outros aspectos interessantes e que valoriza visualmente o filme de Ridley Scott. Mesmo que as batalhas aconteçam sem grande balizamento histórico, o que é uma pena, elas por si só trazem para "Napoleão" as cenas mais violentas (por este motivo, o filme foi indicado para 18 anos) e impactantes. Destaque para a batalha contra a Prússia, em que Napoleão se utiliza do gelo para ganhar seus adversários, onde o jogo de cores (que combinam com as três cores da bandeira francesa) e de câmeras subaquáticas, produzem um efeito visual muito bonito.
Mas tudo isso é pouco para segurar as 2h40 de duração do filme. Quando a Apple TV tomou a resolução de esquartejar o filme em mais de uma hora para poder ser exibido no cinema, se criou uma dificuldade imensa para a montagem, que conta com uma história longa com cortes estranhos e que não ajudam na fluência narrativa do filme. Vários personagens entram e saem da história sem nenhuma cerimônia, o que torna o todo bem complexo de ser analisado. "Napoleão" mostra que não basta se ter grandes atores, orçamentos rechonchudos e azeitados e um bom diretor, para que um filme tenha um resultado favorável. É necessário que o diretor tenha controle sobre produto final e mais voz no processo de produção. Ridley Scott, de maneira antiética, andou a falar mal injustamente da versão de Abel Gance, de 1927, logo dele que criou várias inovações técnicas para realizar seu filme, um marco do cinema mundial. E digo mais, sugiro que geral corra atrás da cópia da obra de Gance para vê-la. Garanto que sairá bem mais feliz do que do filme Frankstein desajeitado de Ridley Scott.
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