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ORLANDO, MINHA BIOGRAFIA POLÍTICA (2023) Dir. Paul B. Preciado


Texto de Marco Fialho

Mais do que um filme sobre a transgeneridade, podemos dizer que "Orlando, minha biografia política" é um tratado político sobre o tema. A direção de Paul B. Preciado é impecável, criativa e arrebatadora, além de ser pungente do ponto de vista político. Aqui, a poesia de Virginia Woolf se encontra com a militância LGBTQIAPN+, a história com a performance, a causa com a arte. Uma obra irreverente e relevante culturalmente, além de provocativa e profundamente educativa, sem jamais cair em um didatismo frágil ou simplista. 

Paul B. Preciado mantém aceso durante toda a projeção um sarcasmo imperdoável e cortante, uma fina ironia perante ao ranço patriarcal da sociedade que não consegue lidar historicamente com pessoas não-binárias. O diretor constrói uma narrativa poética e híbrida, em que o documental cria um amálgama poderoso com a ficcionalização, instaurando a reinvenção e a transgressão como elementos fundamentais para o alicerce de uma nova historicidade que precisa ser pensada para o século XXI. 

O grande mérito de Paul B. Preciado é o de se apropriar da transgressão de Virginia Woolf para revisitar as origens do patriarcalismo e do colonialismo como ideologias historicamente construídas para uma visão binária da sociedade. Orlando, uma obra do século XX, serve de ponte tanto para se questionar os séculos precedentes quanto para se discutir os dias de hoje. Preciado, ao invés de fazer perguntas prefere instaurar uma estética e uma ética assentada na visão não-binária do mundo e o faz com inegável competência e eficácia.

"Orlando", de Virginia Woolf, mais do que inspiração, serve de sustentáculo teórico para Preciado se esparramar em suas ideias sobre transgeneridade e não-binarismo, se utilizando de um acessório de pescoço utilizado no século XVI pela personagem-título para representá-la nos dias de hoje. "Orlando somos todas nós", um lema identitário da luta política e afirmativa da transgeneridade. A relação entre literatura, história e sociedade é tratada de forma não linear e abusadamente sem hierarquia. O diretor se permite viajar por entre os elementos constitutivos de seu filme, intercalando passado e presente, obra literária e ativismo sem maiores pudores, mas sempre mantendo a unidade temática de desconstrução histórica da ideia de binaridade e do sexismo machista e opressor. 

A sacada de se ter diversos Orlandos é ótima e funciona como um mote também cômico ao binarismo, afinal a pessoa se apresenta com o seu nome e diz que está a representar Orlando para o filme. Fora a brincadeira metalinguística, já que vemos o próprio esqueleto do filme ser construído, pois a inserção da literatura é realizada sem filtros, está ali imiscuída permanentemente à narrativa. Poesia, crítica social ao patriarcado, análise histórica com uma reflexão sobre o viver cotidiano estão vivos em todos os frames filmados por Preciado. Já o livro de Virginia Woolf está presente em falas que o analisam, como também em citações abertas, como uma espécie de estrutura atemporal para o filme e mais ainda como exploração histórica a permitir viagens surpreendentes no tempo. 

Algumas cenas são particularmente reveladoras e fascinantes, como a do livro "Orlando" que é levado a uma mesa de operação para mudança de sexo. Esse humor fantástico, bizarro e criativo, me fez lembrar as liberdades cênicas promovidas por Godard em alguns de seus filmes, de gostava de criar provocações filosóficas visuais perturbadoras para os sentidos dos espectadores. Outra cena fabulosa é quando vemos uma sala de espera de consultório psiquiátrico se transformar em uma rave, com música eletrônica, luzes coloridas, trocas de pílulas e injeções hormonais, celebrando uma espécie de farmacoliberação. Mas o que dizer da cena em que um personagem transgênero entra em uma loja de armas para trocar sua machadinha do século XVIII por uma arma de fogo mais mortífera. Há obviamente nessa cena uma enorme carga de simbolismo em relação às armas de ontem e de hoje. Mesmo que esse humor seja transbordante e repleto de ironia, a mensagem política é clara de que no processo da luta se precisa atualizar sempre as armas.

"Orlando, minha biografia política" parte abertamente dessa mistura entre o pessoal e uma forte referência literária para reescrever a história dos corpos transgêneros. Por meio de narrativas de diversos corpos transgêneros, Paul B. Preciado fala de si, afinal, o discurso predominante é o dele, que em voz over vai costurando uma narrativa múltipla e confessional. A partir desse filme, muito pode ser dito e repensado sobre o tema, mas o seu aspecto mais precioso está na sua criatividade, na sua capacidade de se arriscar pelos belos textos poéticos de Woolf e fazê-la ecoar por personagens do presente. 

Nessa linha tênue de narrativas complexas e diversas, o diretor traça um painel histórico e militante preciso, ao cravar à necessidade da afirmação da luta contínua, para que os corpos possam ser libertos de quaisquer amarras do passado, presente e futuro. Um tratado político e cinematográfico mais poderoso que esse é impossível.

Comentários

  1. Gostei muito da sua análise (filme complexo e rico, ler seu texto, como sempre, é ótimo).
    Achei interessante, no episódio das armas, o personagem escolher a raposa empalhada, o que me lembrou as temporadas de caça, esporte muito mencionado na literatura clássica inglesa.

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