Texto de Marco Fialho
Quando nos dispomos a falar de Nelson Pereira dos Santos, a conhecer suas obras e o seu pensamento sobre cinema, chegamos mais perto do próprio Brasil. Nelson fez parte de uma geração que se dedicou a mergulhar em nossas raízes mais profundas, que acreditou ser possível compreender o país para transforma-lo. Influenciado por uma concepção modernista, ele buscou as raízes do nosso subdesenvolvimento, assim realizou obras fundamentais, com sérias implicações políticas e estéticas, pois era preciso modificar tanto as estruturas sociais quanto as estéticas que grassavam no Brasil dos anos 1950, um país que queria crescer para enriquecer poucos às custas de muitos.
O modo de representar o país enquanto imagem não o agradava, pretendeu então trazer as camadas mais pobres para o protagonismo de seus filmes, como denúncia e também como possibilidade transformadora. A grandeza do documentário "Nelson Pereira dos Santos - Vida de Cinema" é capturar essa essência do cinema de nosso mais representativo cineasta (junto com Glauber, lógico), como o primeiro que despertou o Brasil para a estética neorrealista, tão em voga na Itália pós fascista. Nem tudo foi aceito logo de cara. "Rio 40 Graus" seria proibido e virado um título obscuro para o sistema político autoritário vigente a partir do golpe civil e militar de 1964. Filmar a favela e seus moradores, em maioria pretos, logo tornaria o filme algo suspeito. Mas Nelson sabia de onde partia, dos temas que queria discutir em seus filmes. O candomblé, a fome dos pobres, as injustiças sociais, o colonialismo, os compositores de samba, a cultura popular, o amor em suas formas amplas e livres, estão entre os assuntos que trouxe para o cerne dos filmes. Nelson era um homem com visão política nítida.
Mas o grande mérito desse filme fundamental para o resgate de nossa memória, é trazer essa história pela voz do próprio Nelson, uma aula sobre o nosso cinema. Filme a filme, os comentários e curiosidades sobre as obras e a carreira do diretor vão se somando. Em poucos minutos, se deduz algo extraordinário: que estamos defronte um gigante da cultura brasileira. O enfoque no popular como potência revolucionária toma a tela de seus filmes e faz cada um deles explodirem com uma riqueza avassaladora aos nossos olhos. Assim, a montagem vai nos conduzindo por esse mundo encantador e consciente de seu papel no cinema brasileiro e mundial. Sim, este é um documento para se compreender melhor o país que somos, que nos tornamos hoje. O cinema de Nelson faz uma arqueologia da cultura, da política, da religiosidade e do social. É uma benção, um presente que o cinema nos deu.
As diretoras Aída Marques e Ivelise Ferreira constroem Nelson como um homem fantástico, dotado de uma capacidade inquestionável tanto para o fazer quanto para a criação. Nelson demonstrou ser um artista de grande articulação cultural e com amplo trâmite entre nomes incontestes como Nelson Rodrigues, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Zé Kéti, Tom Jobim, Grande Otelo, entre outros. No meio cinematográfico foi o pai de todos os grandes nomes do Cinema Novo. Quando Nelson capturou as concepções do neorrealismo italiano para o cinema brasileiro, ele impulsionou o que seria posteriormente o Cinema Novo, abriu uma porta valiosa para que filmássemos a realidade que estava posta nas ruas, a possibilidade de abraçar os temas mais cruciantes, mesmo que os meios cinematográficos não fossem os ideais. Assim, Nelson ensinou os jovens a incorporar a precariedade material na forma, para que ela se tornasse não só algo premente como também um parâmetro conceitual a ser seguido e replicado pelos novos cineastas.
Há muitas histórias interessantes neste documentário, em especial, detalhes de como Nelson produziu os filmes mais importantes, de como chegou aos resultados exitosos que foram tão comentados no decorrer dos todos esses anos. O filme tem ainda anedotas pitorescas sobre os bastidores das obras mais famosas como "Rio 40 Graus", "Rio Zona Norte", "Vidas Secas", "Memórias do Cárcere", "Boca de Ouro" e tantas outras. A magnitude do conjunto da obra é gigante, tanto pela quantidade quanto pela qualidade. Mas "Nelson Pereira..." resgata ainda a personalidade ímpar do artista, sua convicção de que cada filme podia fazer as pessoas refletirem sobre o impacto da história sobre o presente do país.
As ideias de Nelson são complementadas por depoimentos dados por parceiros à época da produção dos filmes. São falas incríveis de Grande Otelo sobre a importância de "Rio Zona Norte" para a sua carreira e de Barretão sobre a fotografia arrebatadora, surpreendente, corajosa e inovadora de "Vidas Secas". E ainda tem Jorge Amado contando sobre as adaptações de suas obras pelo cinema de Nelson. São pérolas que se somam a vários depoimentos inteligentes, espirituosos e bem-humorados do próprio Nelson.
Apenas o final do filme destoa do todo. Não sei se as diretoras não possuíam material disponível de Nelson falando sobre os últimos filmes, mas o fato é que há uma aceleração na parte final e sentimos que algumas obras não foram discutidas como tantas outras, e tudo se encerra meio que abruptamente. Mas nada que tire o brilho desse documento importantíssimo sobre o nosso cinema, ouso dizer, quiçá, um dos mais decisivos para a memória do cinema contemporâneo brasileiro, junto com "Deixa que eu falo" de Eduardo Escorel sobre o genial Leon Hirszman, outra pérola, e que temos crítica sobre ele no link: DEIXA QUE EU FALO (2007) Direção de Eduardo Escorel (cinefialho.blogspot.com).
"Nelson Pereira..." mais do que um filme sobre cinema, creio ser sobre o Brasil, um país novo, complexo, que se quer desenvolvido tendo como base a desigualdade social entre as raças, as classes e os gêneros. Assistir a cada filme de Nelson é uma maneira de nos voltarmos para algo que nos arremessa para uma ancestralidade, que promove uma viagem a uma história que não nos foi contada e que precisa ser resgatada, para que o coletivo possa tomar as rédeas do destino que historicamente sempre foi guiado por uma minoria egoísta e arrivista. Ver Nelson é uma forma de se conscientizar sobre como realmente fomos injustamente forjados como povo. Aída Marques e Ivelise Ferreira merecem muitos salves por terem trazido a nós essa história tão magnífica.
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