Pular para o conteúdo principal

RHEINGOLD (2022) Dir. Faith Akin




O ouro e o rapper

Texto de Marco Fialho

O diretor alemão Faith Akin é desses diretores que prezam por histórias mirabolantes ("Soul Kitchen", 2009; "Em pedaços", 2017; e "O bar luva dourada", 2019), algumas delas até esbarram na realidade, como é o caso de "Rheingold", que narra a história do rapper de sucesso, Xatar, em seu percurso atravessado por idas e vindas, inclusive pelo mundo do crime. Faith conta essa história como se fosse a gravação de um videoclipe, com imagens fortes do mundo do crime, mas também enaltecendo a riqueza que envolve tanto o meio musical quanto o do crime. O título Rheingold é inspirado na ópera "Das Rheingold" (O ouro do Reno) de Richard Wagner, que trata da ambição do homem pelo ouro, o poder e a riqueza que ele traz. Faith remete diretamente à opera wagneriana justamente na cena subaquática final que remete às donzelas do Reno, cena plasticamente muito bonita, na qual o diretor faz uso de drones e câmeras GoPro.           


Um dos motes do filme de Faith Akin é a participação de Xatar em um roubo milionário de uma grande quantidade de ouro. O filme em si é tratado por Akin ora como um drama ora como uma grande aventura embalada pelo ritmo do hip hop. A câmera em "Rheingold" torna-se protagonista e se coloca sempre em pleno movimento, parece querer invadir a cena para dominá-la. A câmera demonstra o quanto Faith Akin se deixou levar pelo seu objeto de estudo e por uma narração específica, por isso os enquadramentos possuem uma dinâmica, eles são feitos e refeitos no próprio ato da filmagem, na maioria das vezes com a câmera na mão.    

Há uma sedução explícita de Faith Akin pelo protagonista, mas também por determinados tipos de filmes. Pode-se dizer que na maior parte de "Rheingold", Faith Akin habilmente costura uma obra que bebe de uma fonte bem conhecida pelos cinéfilos: os filmes de gangues e o diretor explora com toda competência possível os manejos dessas histórias embasadas pela violência e pelo sentimento de fidelidade canina, elementos que melhor garantem alguma chance de sobrevivência dentro desse bizarro e cruel "métier". O filme viaja por diversos tempos e países, bem ao gosto daqueles filmes de espionagem, em que os personagens mudam de país como se muda de roupa, embora Faith Akin sempre comunique em letras garrafais tais mudanças de tempo e lugar.   


Mas separemos um importante detalhe. Giwar Rajabi é o menino e depois homem cuja trama está assentada, e Xatar, o seu nome artístico como rapper. Evidente que ambos são a mesma pessoa, embora Xatar marque uma cisão na vida de Giwar e essa mudança se dá pela irradiação da música na vida do protagonista. Creio que Faith Akin sabe muito bem dividir essa história, mesmo sabedor que uma está profundamente ligado a outra. Esta é uma história de risco para o diretor? Com certeza, pois é imenso o desafio de se contar uma história como esta e cair nas garras sedutoras de um menino que enfrentou de tudo desde cedo até atingir o sucesso e a riqueza. Mas o quanto desse sucesso tem a mancha do sangue alheio? Faith mostra o quanto de sangue está manchado cada pedacinho de ouro de Xatar. Mas confesso que a cena final não esconda um certo olhar generoso à trajetória de Xatar, mesmo que alguma ambiguidade escorra pelas bordas da narrativa. 

"Rheingold" soou exatamente assim para mim, como uma obra ambígua, bem narrada, que coaduna com o carisma de seu protagonista. E talvez nesse sentido, a personagem da esposa de Xatar seja a que melhor sintetize a sensação que o filme me deixou. Ela se sente atraída por Xatar desde nova de idade, afinal moravam no mesmo condomínio de apartamentos, mas sempre nutriu uma certa desconfiança em relação a como ele decidiu encaminhar a própria vida. Porém, o mais justo seria colocar Faith Akin nessa perspectiva revisionista que fez a linda menina se desfazer da desconfiança e encarar o desafio de viver com um homem que levou uma vida entre o crime e a arte da música. A minha desconfiança confesso que ainda está aqui, por saber que por detrás de toda grande riqueza sempre se esconde uma boa dose de sangue da própria pessoa e do alheio. E é aí, que também lanço um belo e tranquilo sorriso acerca da minha condição financeiramente humilde.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

MOSTRA CINEBH 2023

CineBH vem aí mostrando novos diretores da América Latina Texto de Marco Fialho É a primeira vez que o CineFialho irá cobrir no modo presencial a Mostra CineBH, evento organizado pela Universo Produção. Também, por coincidência é a primeira vez que a mostra terá inserido um formato competitivo. Nessa matéria falaremos um pouco da programação da mostra, de como a curadoria coordenada pelo experiente Cleber Eduardo, montou a grade final extensa com 93 filmes a serem exibidos em 8 espaços de Belo Horizonte, em apenas 6 dias (26 de setembro a 1º de outubro). O que atraiu o CineFialho a encarar essa cobertura foi o ineditismo da grande maioria dos filmes e a oportunidade mais do rara, única mesmo, de conhecer uma produção independente realizada em países da América Latina como Chile, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Cuba e Argentina, sem esquecer lógico do Brasil.  Lemos com atenção toda a programação ofertada e vamos para BH cientes da responsabilidade de que vamos assistir a obras di...