A poesia da floresta e do mundo por Paz Encina
Texto de Marco Fialho
Tem cinema que para existir precisa redefinir o que comumente se entende ou se espera por cinema, é o caso dos filmes da realizadora paraguaia Paz Encina. Seu novo trabalho, "EAMI" (na língua do povo Ayoreo que dizer floresta e mundo), se constrói a partir de uma busca por uma linguagem que expresse seu objeto, aqui no caso, a cultura ancestral dos povos indígenas que vivem isolados na região do chaco paraguaio. A diretora abre mão dos diálogos ao preferir incorporar à narrativa a voz over desses personagens perseguidos por um sistema opressor e desigual, mas reparem como a voz monocórdica da narração remete a uma canção de ninar, daquelas que ficam na memória pela musicalidade marcante e insistente. O filme recebeu a láurea máxima no prestigiado Festival de Cinema de Roterdã.
"EAMI" é todo falado na língua dos Ayoreo, que chega aos nossos ouvidos como música, através de vozes em off oriundas dos personagens dessa etnia. Essa camada sonora talvez seja a mais expressiva e pode-se dizer que ela atua poeticamente como a alma do filme. E esses sons surgem evocando animais, vozes, murmúrios, gritos de desespero e do vento (um personagem poderoso desse filme), são sons de uma floresta em extinção, que está sendo atacada e posta em risco. Incrível como a diretora Paz Encina amarra uma contundência mesmo que tudo seja eivado pela delicadeza. "EAMI" é todo pensado por intermédio de memórias dos povos originários e essa camada soma ao filme uma dor permanente, não há um momento sequer de leveza durante os 84 minutos da projeção. Os rostos, os sons, os tons e as palavras em si, se cobrem de uma beleza melancólica e entoam uma forma poderosa de reflexão. As reencarnações são sistematicamente mencionadas e elas não tem hierarquia em relação aos animais: lagarto, tartaruga e pássaros fazem parte da cosmogonia dos povos originários.
Há ainda a poderosa camada imagética de "EAMI". Cada imagem possui um poder de ressignificar o universo abordado, não é documental nem tampouco ficcional, se instaura exatamente na brecha entre um e outro, opera um tipo composição híbrida, em um lugar do entre. Talvez possa se pensar numa aproximação mais efetiva com um formato poético de expressão visual, entre o literal, o onírico, o encenado e o ritualístico ancestral. Nem sempre as imagens funcionam como narrativas ou para ilustrar o que está sendo dito. Há uma certa vibração impressionista, um desejo de transmitir mais sensações do que ideias diretas, mesmo que a camada política do filme, de certa forma, seja visível, embora nunca tão direta pelas imagens, apenas algumas de homens armados cercando os indígenas e dando ordens a eles, mas sem tocá-los.
Paz Encina trabalha exaustivamente com pesquisa em seus trabalhos e reelabora burila insistentemente seus roteiros, mesmo que ela se liberte deles no processo de filmagem, uma espécie de se conhecer profundamente para poder criar com liberdade. Esse esforço de concepção da diretora encerra para o espectador uma forma diferente de fruição, pois os condicionamentos que temos por hábito não nos servem de nada, pois precisamos deixar nossa postura e maneira de entender a construção de um filme para poder entrar em sintonia com a sensorialidade diferente proposta por Paz Encina em "EAMI".
A diretora Paz Encina teve por formação originária, antes de adentrar no cinema, a da música. E creio ser fundamental pensar a obra dela sempre por uma perspectiva de uma partitura, pois a sua forma fílmica muito se parece com uma sinfonia, como se ela alinhavasse a combinações de várias notas simultaneamente. "EAMI" constrói-se desta maneira, com camadas superpostas como significantes, como potências que agitam nossos sentidos. O cinema de Encina consegue ser de uma só tacada poético e de denúncia. Pode-se até indagar se realmente é eficaz em sua totalidade, ou mesmo, se aqui e ali, soa impreciso e irregular. Mas também não se pode negar que quando ele se encaixa, o maior beneficiário é o público.
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