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RETRATOS FANTASMAS (2023) Dir. Kleber Mendonça Filho



Tudo que é sólido se desmancha no ar


Texto de Marco Fialho


"De certa forma, o passado é muito mais real, ou enfim, mais estável, mais resiliente que o presente. O presente escorrega e some como areia entre os dedos, adquirindo peso material apenas em sua lembrança." 

                         Andrei Tarkóvski


"Retratos fantasmas" é um filme-poema que envolve muitas camadas a serem consideradas. Kleber Mendonça Filho realiza um filme delicado, tocante e fundamentalmente muito pessoal. Há um risco eminente quando o diretor se emaranha de tal forma à narrativa e à própria trama, mas Kleber, de maneira comovente, se sai muito bem quando resvala em um humor fino, elegante e inteligente. Não vale muito comparar esse filme com os que vieram antes, talvez só na perspectiva de que muitos fatos presentes em seus trabalhos partiram de alguma referência concreta, em especial, o apartamento de Setúbal.   

Desde a primeira cena Kleber Mendonça Filho já explicita que "Retratos fantasmas" irá estabelecer como base a sua relação tanto com suas memórias quanto as do Centro da cidade de Recife. Por isso, a escolha de narrar em primeira pessoa faz sentido. Kleber torna essa experiência algo profundamente sensorial e coletivo, porque a sua história se mistura com política, família (sobretudo a mãe historiadora), e lógico, cinema. O ato de fazer filmes em casa foi algo significativo, amarrou inclusive uma maneira de ver o mundo, onde todas essas coisas estavam vivamente entrelaçadas. A casa e suas transformações estão no filme, por meio de imagens fragmentadas que ajudam a reconstruir uma memória possível. O tempo aqui é movediço, capturado por flashes e pequenas memórias fantasmas. Assim, vemos e não vemos o cachorro, a mãe estudando, os filmes acontecendo naquela casa-laboratório. A narração de Kleber captura com consciência um tempo esmaecido, tem uma melancolia revestida por um humor de quem sabe que narra um tempo irrecuperável, quase inacessível, como se víssemos sobras de um filme incompleto. A fantasmagoria dos filmes de terror, de repente toma esse documentário tão pessoal, o calafrio, vez por outra, nos alcança aqui.                           


"Retratos fantasmas" é um primor, por ir se instalando silenciosamente em nossas almas, um filme que acaba na tela e se prolonga em nós, que nos deixa pensando sobre o processo de viver, de como o tempo toca nas coisas e em nós, mas do quanto também deixamos nossas marcas pelo tempo, embora o fugidio seja o que melhor defina tudo isso. Kleber é extremamente feliz ao alçar a palavra fantasma para o título de seu filme, pois essa é a palavra que melhor o expressa, e talvez, a aparição de um vulto em um retrato diga algo impenetrável e inalcançável a nós e ao próprio realizador. Ainda pensando no título, já a palavra retratos nos remete a registros de momentos, de uma tentativa de parar esse tempo, de alguma maneira congela-lo. Os retratos são algo que nos apegamos, mas também são objetos tristes, quando percebemos que se apagam, perdem a cor e se esmaecem. A palavra retratos é quase que uma redundância à palavra fantasmas, pois ambas estão ali para alongar um tempo que já morreu. Ambas sugerem sensações e impressões fugidias, algo com poder de escorrer pelas nossas mãos.          

Se até o momento estamos a falar do tempo, essa entidade maior que nós, e que nos devora em seu silêncio aterrador, com seu relógio implacável sempre a caminhar pelos corpos e a nossa revelia. Mas o tempo necessita do apoio concreto do espaço. E note-se o quanto Kleber divide "Retratos fantasmas" em três partes relacionadas ao espaço: o apartamento de Setúbal, os cinemas do centro de Recife e igrejas e espírito santo (que seriam o espaço dos cinemas de rua ocupado pelos evangélicos). Todos os espaços retratados, de certa maneira, ainda estão em seus lugares e como é linda a cena em que mostra um cinema completamente posto abaixo, mas que no piso ladrilhado se deixa entrever o seu passado. Afinal, são dos resquícios materiais que os fantasmas sobrevivem. O terror novamente ronda essa narrativa. Os filmes de fantasma são sempre revisitações dos mortos no mundo dos vivos.         


Se na primeira parte temos a casa de Kleber, na segunda e na terceira os cinemas do Centro assumem o protagonismo das cenas. Essas partes revelam o amor de Kleber por um tempo em que o Centro tinha um status, era um espaço para onde o dinheiro fluía. Se até os anos 1970 ali era um território de potências e importâncias, aos poucos, no decorrer dos anos instaurou-se a decadência e os prédios começaram a ruir, assim como os grandes e populares cinemas de rua. Mais uma vez, Kleber registra uma atmosfera fantasma, com cinemas intactos em seu formato sendo ocupados pelas igrejas evangélicas. Como bem registra o diretor, o cinema se transforma em hospedeiro de seres alienígenas. Essa é uma imagem cinematográfica impecável, o dinheiro continua a ditar esse espaço, mas agora é de outra natureza. O grande cineasta russo, Andrei Tarkovski, dizia que o cinema é imbuído de uma espiritualidade, de algo do âmbito do sagrado. Do templo do cinema à igreja em si, tudo foi um passo. Agora, vários cinemas são realmente templos religiosos. E o dinheiro continua a girar por ali. A sobrevivência do São Luis não deixa de ser um protótipo desse templo-fantasma que ronda o filme. O fato dele estar impecavelmente igual ao que era anos atrás acentua a sensação fantasmagórica, e as marcas esmaecidas que o tempo deixou em seus carpetes coloridos desgastados reafirma essa ideia de uma época que está passo a passo de apagando.     

Tempo e espaço, ambos são elementos em contínua transformação e os vídeos de Kleber registram as marcas que o tempo deixam nos espaços. Ver uma imagem de trinta ou quarenta anos atrás pode ser algo demolidor para o espírito humano, pode constatar o quanto somos ruínas resistindo às contínuas marretadas e que enquanto imagem estamos lentamente desaparecendo. "Retratos fantasmas" nos fala sobre um esforço humano de tentar a resistir em um mundo capitalista que necessita da destruição/construção para continuar a girar. Daí a genial sequência final a nos assombrar com a concretude de tantas drogarias a se proliferar como uma nova forma de templo de nossos dias. 


Vivemos uma Era em que nossos lugares de memórias são sistematicamente demolidos, afinal, como dizem: "o mundo precisa evoluir, andar para frente". Kleber faz isso não como um discurso político às claras, apenas aponta a câmera e registra tudo como imagens de hoje, de um mundo doente que emergiu em cima de outro que se dissolveu, embora os escombros dele estejam ainda lá, e o que Kleber faz é um trabalho de arqueólogo a escavar memórias soterradas. 

"Retratos fantasmas" é um documentário que consegue temperar com habilidade ternura, melancolia, afetos e fantasmas, retrata vestígios e desaparecimentos, saudades e desencanto, com uma cobertura graciosa de autoironia. É um Kleber em busca de si mesmo, autorreflexivo, que tal como João Moreira Salles em "Santiago", recorre às imagens cinematograficamente do passado para tentar continuar iluminando o presente. O cinema como uma projeção ilusória da vida, como um feixe de luz projetado numa tela, como mais um fantasma a rondar e assombrar o mundo dos vivos.

Comentários

  1. Um filmaço que assisti na pré estreia, no cinema São Luiz, Largo do Machado com apenas 3 pessoas (eu inclusive) e saímos os três embriagados pelo lirismo, pela historicidade, pela nostalgia e pela força que apresenta em seguir adiante, olhando para trás para seguir em frente sob novos desafios.
    Bela análise, a sua, mas tem muito ainda para se falar, vale um debate.

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    Respostas
    1. Obrigado!! Pena que não se identificou. Está sendo uma experiência fantástica ler a crítica de vários colegas e ver como esse filme abre portas diversas, muitas possibilidades de análises. A crítica é sempre uma possibilidade, ela nem o filme em si são um fim em si mesmos, são apenas uma maneira de expandir uma experiência de fruição. Obrigado pelo comentário, adorei poder lê-lo.

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  2. Louca prá ver Marco! Crítica minuciosa e sensível. Sensacional já me vendo sentada em uma cadeira de cinema. Aqui em Porto Alegre

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