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ANHANGABAÚ (2023) Dir. Lufe Bollini



Uma montagem que desorganiza a potência da luta pelo território

Texto de Marco Fialho

"Anhangabaú" é um documentário sobre a luta pelo território em um contexto onde tudo já está dominado pelos poderosos. O filme de Lufe Bollini abarca territórios diversos em conflito, como um prédio em ocupação, uma terra indígena guarani perto da capital e a briga de Zé Celso por um parque no Bexiga. É uma São Paulo múltipla, urbana e contraditória. Há um desejo que exala do filme de uma ampla transgressão, com corpos diversos e indígenas brigando por terra e dignidade.

A montagem elíptica do filme, realizada pelo próprio diretor, não prima por seguir nenhuma noção de ordenamento. Não há nenhum didatismo na costura das sequências, saímos do ambiente da floresta para o da ocupação sem nenhuma explicação prévia ou contextualização, o que às vezes gera uma sensação de estranhamento e confusão. A câmera à mão em muitas cenas também salienta uma liberdade que parece inspirada nos personagens e que volta e meia salta da tela. O filme deseja abraçar muitos territórios e personagens na múltipla São Paulo, mas a discussão em torno de Zé Celso, por exemplo, e sua luta por uma cidade mais inclusiva, coletiva e artística acaba ficando por demais periférica no decorrer do filme.

Mas essa visão múltipla que "Anhangabaú" transpira, não é de todo interessante, em algum momento o filme vai cansando por não conseguir delimitar justamente um foco em personagens e essa dispersão acaba por levar o documentário para algo muito solto e sem muita consistência, nunca somos informados sobre os territórios filmados, o que dificulta muito a apreensão do conteúdo. Enquanto tudo soa como potente por mostrar por muitas vezes corpos transgressores, lutas justas e necessárias, o excesso de frouxidão e elipses acaba por dominar o filme e não permitindo que essas potências se confirmem.                           

Logo no início do filme, vemos um casamento indígena na aldeia Guarani em Jaguará e o interessante é vermos os indígenas bebendo guaraná Dolly e tomando champagne. Logo depois há um corte e vemos um grupo ocupando um prédio no Anhangabaú, um coletivo com espírito anarquista. Há de cara esse choque, em que um grupo indígena se apresenta inserido em costumes claramente consumistas, enquanto jovens de classe média ostentam um plano coletivista em uma ocupação. São atos dicotômicos, que o filme acaba por explorar pouco, mas que poderia render boas cenas. 

Como o filme prefere cavalgar pelo indeterminado do ponto de vista narrativo, vários bons motes são desperdiçados e assistimos todos eles se escorrerem pelo ralo. Lufe Bollini até conseguiu juntar um bom material fílmico e um bom argumento, mas perdeu a oportunidade de organiza-los de maneira satisfatória e potente, uma pena se considerarmos a relevância que o tema do território tem para a discussão de um país mais justo e igualitário, a narrativa de "Anhangabaú" se perde na miscelânea de informações e personagens propostas pela montagem. 

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