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O ALECRIM E O SONHO (2021) Dir. Valério Fonseca


Um personagem que sonha em vida


Texto de Marco Fialho

Diante tantos filmes internacionais marqueteiros e alavancados por grandiosos processos publicitários, "O alecrim e o sonho" é uma dessas gratas surpresas que só o cinema independente brasileiro pode nos brindar. Já faz muito tempo que no Brasil a qualidade de um filme está associada ao público que o vai assistir, mas precisamos buscar outras referências para analisar uma obra cinematográfica que não seja apenas  o da bilheteria, ainda mais que esse será mais um a tentar competir em franca desvantagem comercial, daí a importância de haver a coragem e a luta de Cavi Borges também como um distribuidor na Livre Filmes. 

O diretor Valério Fonseca realiza em "O alecrim e o sonho" um filme surpreendente, com pouquíssimos diálogos e sustentado por interpretações surpreendentes, em especial, Valdinéia Soriano (uma atriz de grande vigor interpretativo) e Fernando Teixeira (um ator excepcional), um protagonista soberbo, que domina com plenitude todas cenas em que está presente. 

Inclusive, deve-se destacar o quanto Valério Fonseca desde a primeira cena consegue imprimir o ritmo do filme que quer propor, deixando bem evidente o quanto a rotina minuciosa e lenta de Vicente (Fernando Teixeira) é fundamental para que o público entenda o personagem e possa nele emergir, um idoso cheio de vida e determinado a viver com plenitude a sua vida. Esse é um filme em que se denuncia francamente o etarismo brasileiro, muitas vezes naturalizado, desprezado, e que indo em uma via diversa, mostra o quanto um idoso pode conquistar independência e autonomia. 


"O alecrim e o sonho" nos convida a dividir com Vicente esse protagonismo, a perspicácia de encarar a vida de frente, e não casualmente, as primeiras cenas são todas desse personagem enfrentando a sua solidão com galhardia e de maneira destemida. O filme acerta ao priorizar ações ao invés de muitas falas, e a aos poucos, vamos conhecendo não só Vicente como todos os personagens que orbitam a sua vida. Tudo em seu entorno transpira simplicidade, e Valério Fonseca mostra isso com uma beleza rara de ser vista hoje em nosso cinema. 

Tudo beira à inspiração, beleza e potência. Valério mostra o quanto a família consanguínea torna-se cada vez mais secundária, enquanto que alguns outros personagens, como o zelador e a faxineira Maria (a excelente Valdinéia Soriano) transformam-se em elementos humanos cheios de vida e solidariedade. Simbolicamente, a trama esbarra na passagem do Natal e essa data será fundamental para se sacramentar a importância das relações humanas no filme. Há momentos em que a câmera flagra o quanto esse mundo digital não só em nada aproxima as pessoas como ainda as isola até mesmo quando elas estão fisicamente próximas. "O alecrim e o sonho" se desenha como uma obra que transita permanentemente entre o mundo lúdico da imaginação e o real. O choque desses universos é revelador tanto para o protagonista quanto para nós espectadores. O filme abre esse diálogo tão poderoso quanto mobilizador e essa riqueza não é meramente epidérmica, mas sim profunda e sentida. É na montagem que esse efeito mágico se concretiza, ao permitir um passeio tanto pela vida quanto pelo inconsciente de Vicente.    


A fotografia busca um naturalismo que muito revela sobre a própria atmosfera realista do filme, em que Vicente se mostra um cidadão comum, como tantos que encontramos na vida, e a direção de arte e figurino também reforçam essa ideia de simplicidade que envolve o protagonista e quase todos que o cercam. Apenas a sua filha se destaca por estar economicamente acima dos outros personagens e isso fica visível não só pelas roupas que usa como pelo apartamento e o prédio à beira-mar que mora na região litorânea de Areia Preta (uma das áreas nobres de Natal). Os enquadramentos têm o mesmo propósito, de dar corpo e vazão a essa vida simples de Vicente, que apesar de aparentemente comum, está repleta de vontade de participar da beleza da vida cotidiana da cidade. Sua vida, na verdade, é uma dádiva e breves cenas de Vicente na praia ou em casa com Maria tornam-se poderosas como transbordamento de emoções. 

A grande verdade é que "O alecrim e o sonho" é  perpassado por poesia em sua simplicidade, além de simbolizar com eficiência o início atroz do Governo Bolsonaro e sua indiferença à arte e à vida. São pequenas sutilezas que vão agigantando essa obra, como a constante imaginação de Vicente ao relembrar (ou simplesmente sonhar?) com a mulher e com a mãe (essa inclusive uma das cenas mais tocantes do filme). Em contraposição há o personagem do funcionário do mercado que odeia os idosos, e que os maltrata constantemente, fato este que vai desembocar em uma tragédia. Há nessas cenas desse funcionário uma denúncia do etarismo, mas há igualmente uma reação de Vicente, o que revela a força inesperada desse personagem pela sua vida quando frontalmente ameaçada. Vale mencionar as cômicas e maravilhosas cenas do personagem que fica a lançar diariamente diversas coreografias para chamar clientes para a loja de variedades do bairro de Alecrim (que possui o sugestivo nome de "Osvaldo Atraente"), onde passa majoritariamente a história, território conhecido por ser um dos mais populares de Natal, em especial pelo seu farto comércio e feiras de rua.


Outra história fascinante é a de Maria, faxineira honesta, trabalhadora e sempre muito atenciosa com Vicente. Uma tragédia em sua vida será decisiva para a trama e determinante para aproximar mais ainda Vicente a ela. É emocionante como a atriz Valdinéia Soriano constrói sua personagem, lhe conferindo graça e grande força espiritual. Suas aparições talentosas e potentes iluminam as suas cenas, e vale destacar o quanto Valério Fonseca prima pelos detalhes e sutilezas em várias cenas, em que muitas situações se explicitam sem que ele tenha que mencionar, ou mesmo mostrar, porque elas ficam subentendidas. A aproximação de Vicente com outros personagens também é decisivo para o filme, caso do zelador e do homem que faz as propagandas hilárias da loja de variedade, que o leva a mergulhar na vida e dificuldades de pessoas que levaram choque elétricos de grande impacto e sobreviveram. Há um quê de humanidade, de uma descoberta transformadora e importante sobre a dor alheia. 

Em síntese, "O alecrim e o sonho" pode ser definido como um filme que se propõe a participar da vida de um homem simples, e ao mesmo tempo, fascinante. A música de Lui Coimbra (um dos pontos mais radiosos do filme) cria uma ambiência perfeita que salienta o lado imaginativo de Vicente, que o cobre de uma magia popular e viva. A parceria entre o diretor Valério Fonseca e o ator Fernando Teixeira realmente é o ponto alto desse singelo e cativante filme. A cada cena pequenos objetos e despretensiosas situações emotivas vão lentamente enriquecendo o filme de significados. Seja o simbólico violão, as fotografias saudosas da família, as lembranças eróticas com a esposa já falecida, a saudade da mãe, o fumo no cachimbo, o carinho com os passarinhos, o jogo de dominó com o amigo músico ou a rápida aparição, porém  evocativa, de "Morangos Silvestres", do célebre cineasta sueco Ingmar Bergman. Todos esses detalhes são pensados para que possamos refletir sobre não só esse personagem, mas também no próprio sentido da vida. 

Solidariedade, afetos, empatia, entre outros gestos, compõem uma série de rituais que elevam essa obra a um patamar desconcertante, apesar de carregar uma simplicidade absurda. É a vida com todo o seu brilho que passa por nossos olhos, sempre com uma implacável beleza. Ali, vemos a vida de Vicente, mas bem poderia ser a nossa ou de algum conhecido nosso, e essa é a maravilha e a mágica desse belo filme que vem do Rio Grande do Norte. Um cinema que prefere sublinhar o humano ao invés de se perder em grandes efeitos visuais, que tem a coragem de olhar no olho do espectador para lhe mostrar a vida como ela é, com as durezas e os sonhos que nela cabem.  

Comentários

  1. Excelente comentário e parabéns para nosso diretoramigo e toda equipe.

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    1. Uma honra receber comentário de um atriz que tanto admiro! Grato, Zezita!!

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