Entre a simplicidade e lucidez
Texto de Marco Fialho
O que mais chama a atenção no documentário "Luis Fernando Veríssimo, o filme" é o amor que a diretora Luzimar Stricher demonstra ao protagonista, o quanto lentamente ela vai o tomando para si, numa pulsação tal que irradia da tela. Fica nítida a impressão que há uma admiração latente e verdadeira vinda da tela para a plateia. O que mais me agradou na direção de Luzimar é o fato dela ter muitos caminhos a trilhar dada a multiplicidade que Luis Fernando Veríssimo oferece, mas ela não cede a nenhuma invencionice e consegue traçar um painel dinâmico, amplo, divertido, esclarecedor, mas sobretudo sóbrio da personalidade desse genial e muito tímido escritor, chargista, desenhista e cronista brasileiro.
Luis Fernando Veríssimo enfrentou muitos desafios na carreira, inclusive a maior de todas: o fato e o peso de ser filho do maior escritor do Rio Grande do Sul, Érico Veríssimo. Como ser escritor com essa sombra gigantesca a recair sobre seus ombros? A diretora mostra com maestria o quanto Veríssimo foi lentamente se solidificando primeiro como artista gráfico nas Editoras Globo, para só depois dos 30 anos de idade começar a escrever profissionalmente crônicas no Jornal Zero Hora, embora antes tenha passado por diversas funções no jornal, chegando até a escrever horóscopo.
O documentário vai perfilando histórias fantásticas e aos poucos revela o lado cômico desse ser humano que tem a fama de não falar muito, cujo gosto pela observação marca a sua história de vida. O gosto pela leitura despertou em casa mesmo, no convívio com o pai Érico. Assim, Veríssimo chega ao Rio como cronista, em uma época em que o ofício da crônica vivia o seu ápice, com Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade, para citar apenas alguns. O documentário fala bastante desse gosto que o cronista tem de falar poeticamente e com sarcasmo do cotidiano, de se pensar o país e a vida política por caminhos do inusitado e aparentemente sem graça universo do corriqueiro, de como se pode transformar a visão sobre o banal pelo uso de um olhar inesperado.
Com os anos, a produtividade de Veríssimo se torna algo incontestável e chama a atenção acerca desse operário da escrita e do desenho, como na sua passagem pelo Jornal do Brasil (1975 a 1999), pela revista erótica Playboy, a Revista Veja, a humorística Bundas, até aportar nos programas humorísticos na TV Globo, como Viva o Gordo, Satiricon, TV Pirata e Comédia da Vida Privada. No jornal criou as famosas tirinhas das Cobras, uma exemplar maneira de contestar a ditadura militar sem ser muito notado pelos os algozes fardados.
O mais interessante nesse documentário é a maneira como a diretora constrói a narrativa. Habilmente, ela coletou depoimentos de personalidades e artistas que dividiram com Veríssimo o trabalho na TV e no Jornal. Mesmo com todos reafirmando a ideia de que o cronista não era de falar muito, vemos a diretora extrair depoimentos diretos e bem humorados de Veríssimo, além de aproveitar vídeos diversos de participações dele em feiras literárias. Um das falas mais interessantes vem do próprio Veríssimo, quando ele relembra que perguntou a esposa porque ela gostava de assistir suas palestras e recebe uma resposta direta e mordaz: "para poder lhe conhecer". Claro que há um humor e um sarcasmo enormes nessa sentença, mas há também uma revelação sobre uma personalidade que tende para o recluso de Veríssimo.
A arte de Veríssimo é definida pelos colegas como um trabalho de escritor que fala pouco para dizer muito. Em um depoimento ouvimos que "Veríssimo foi um cronista que desenvolveu uma versão literária típica de um chargista", tal a capacidade de criar imagens por meio de palavras certeiras. Aliás, são muitos os colegas a alinhavar impressões sobre o escritor, nomes como o de Jô Soares, Zuenir Ventura, Jorge Furtado e Ziraldo descrevem sua experiências e momentos de convivência com o tímido escritor gaúcho.
O documentário trata de várias peculiaridades de Veríssimo, em especial a sua admiração pelo jazz, que o fez aprender saxofone e montar uma banda para tocar na noite gaúcha. A paixão pelo jazz teve início na boa parte da infância que passou nos Estados Unidos, experiência essa que o fez ser fluente na língua inglesa, o que o ajudaria futuramente em trabalhos no Brasil, sobretudo como tradutor. O filme logicamente não esquece os vários livros campeões de vendagem, como o popular "O analista de Bagé" (seu maior sucesso, com mais de 100 edições), "Ed Morte", "A velhinha de Taubaté" e "Comédias da Vida Privada". E lembremos que o Brasil é um país em que a literatura brasileira vende pouquíssimo.
"Luis Fernando Veríssimo, o filme" tem como mérito ensejar uma narrativa sedutora, mesmo que tenha momentos de algumas informação repetidas, que não chegam a comprometer no âmbito geral. Se todos os depoimentos apontaram para descrever Veríssimo como um escritor e chargista conciso e preciso, pode-se dizer o mesmo da direção de Luzimar Stricher, que consegue em duas horas de filme narrar seus principais sucessos e permitir ao espectador acessar a personalidade insólita, enclausurada e bem humorada de Veríssimo. Um filme que revela a simplicidade e a lucidez de um cronista genial, amado por uma multidão de admiradores Brasil afora. Fãs de frases como essas abaixo:
"Quando a gente acha que tem todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas".
"No Brasil, o fundo do poço é apenas uma etapa".
"Se você tivesse que identificar, em uma palavra, a razão pela qual a raça humana ainda não atingiu (e nunca atingirá) todo o seu potencial, essa palavra seria 'reuniões'."
"Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data."
"A multiplicidade humana é isso. A tragédia é essa. Dois nunca são dois, são dezessete de cada lado. Quando você pensa que conhece todos, aparece o décimo oitavo."
"O mundo não é ruim, só está mal frequentado."
"Mas eu desconfio que a única pessoa livre, realmente livre, é a que não tem medo do ridículo".
"As pessoas que querem compartilhar as visões religiosas delas com você, quase nunca querem que você compartilhe as suas com elas".
"A minha musa inspiradora é o meu prazo de entrega".
"Dedico-me aos clássicos: Sófocles, Virgílio, Shakespeare e ao picolé de coco."
"No fim, o que a gente mais sente falta do passado é o seu futuro".
"Tem muita gente honesta neste país. Só não se identificam para não ficar de fora se aparecer um bom negócio".
"Brasil: esse estranho país de corruptos sem corruptores".
"Não vejo vantagem na reencarnação, a não ser que conte tempo para o INSS".
"Com o tempo, os detalhes estragam qualquer biografia".
"A política é sempre má palpiteira em assuntos de ciência, mas a ciência arregimentada para provar preceitos políticos é o pior".
"Com esse negócio de clonagem, já estou me sentindo um disco de vinil".
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!