O poder da cultura e do livro
Texto de Marco Fialho"Ela mora logo ali" possui diversas camadas que fazem dele algo realmente mágico. São muitas representatividades juntas: da mulher preta, da mãe atípica, da mãe dedicada, da mãe pobre, analfabeta e sobretudo lutadora, a da importância da leitura para a transformação social, da generosidade e empatia como motor da vida, da importância de todas as formas de letramento e da defesa da cultura como emancipação de um povo. A força de um filme está em seu poder de comunicar e se conectar ao público, de interrogá-lo e fazê-lo refletir sobre as desigualdades sociais que às vezes está na cara de todos, embora ninguém veja de pronto, de como cada ser humano possui uma riqueza e um desejo de se expandir. "Ela mora logo ali" tem a hábil capacidade de sonhar a vida no cotidiano, pois aqui não se trata de um sonho utópico, mas de um sonho que se constrói no dureza do dia a dia, na esperança de redenção de quem acorda cedo para cair na labuta e poder comer à noite.
Mas esse belo filme de Rondônia possui ainda atributos técnicos interessantes e merecedores de serem mencionados e sublinhados. A câmera, por exemplo, está sempre no lugar certo, flagrando enquadramentos precisos e expressivos, como a da mãe tendo a janela como moldura e com o rio ao fundo, ou a cena da protagonista perambulando pela livraria em busca de um livro, com a câmera perseguindo sua luta pela cultura e pelo afeto. E claro, destaque total para cada segundo em que a câmera captura o rosto e o corpo de Agrael de Jesus, uma atriz impressionante, daquelas que rouba a cena cada vez que aparece. E ainda tem a montagem impecável de Michele Saraiva, que consegue confessar em apenas 16 minutos uma história com tantas informações, garantindo que o ritmo do filme se mantenha do início ao fim.
"Ela mora logo ali" traz uma história fundamental para o país, de uma personagem que esbanja brasilidade por todos os lados e poros, de uma mulher preta, trabalhadora informal, analfabeta e repleta de afeto e generosidade. O filme carrega uma dimensão cultural preciosa, por permitir que vejamos uma transformação pelo livro e pela ancestralidade, porque essa protagonista tem consciência de seu papel como griot, como uma contadora de histórias, lembrando que a mãe dela, também analfabeta, inventava histórias e narrativas para ela. A história de Fabiano Barros, um dos diretores do filme, é tomada por iniciativas itinerantes de levar a cultura para pessoas que nunca assistiram teatro e cinema. Esse desejo de contagiar as pessoas com a cultura e com a sua capacidade de transformação está no filme, de ponta a cabeça.
Esse é um filme que enternece e nos motiva a continuar acreditando e lutando por um mundo mais inclusivo e afetuoso, mostra o quanto é crucial se ter um cinema preocupado com territórios desconhecidos, do tipo o Brasil não conhece o Brasil, de regiões que precisam entrar no mapa não só pelo viés de consumidor de cultura, mas também como produtora de conteúdo, para poder construir uma visão de mundo a partir de sua perspectiva. "Ela mora logo ali" nos fala de uma determinada Rondônia, sofrida, mas esperançosa, e isso, definitivamente, não tem dinheiro que possa pagar. Esse filme acabou de se tornar um marco para o cinema de Rondônia, ao ser o primeiro filme inteiramente filmado no Estado a ser agraciado com três Kikitos (atriz, roteiro e júri popular) no 51º Festival de Cinema de Gramado, além de ganhar prêmios em diversos outros festivais Brasil afora.
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