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MEMÓRIAS DA CHUVA (2022) Dir. Wolney Oliveira




A caminho de Bacurau

Texto de Marco Fialho

"Memórias da chuva", filme cearense de Wolney Oliveira, de certa maneira simboliza muito o que é a história do povo nordestino: uma eterna luta contra os desmandos e autoritarismo dos políticos que sempre pensam primeiro em seus interesses econômicos e jamais no bem-estar do coletivo. Nessa história, a cidade Jaguaribara inteira é destruída para a construção da Barragem Castanhão, que no processo se revelaria o quanto ela viria beneficiar apenas as indústrias locais e o agronegócio, ignorando a dor lancinante do abandono de toda uma população que ali morava. 

O filme de Wolney, não tem bem um protagonista, já que vários moradores participam como personagens, mesmo que a Irmã Bernadete tenha algum tempo a mais na tela. A impressão que fica é que a cidade de Jaguaribara é a maior personagem do documentário. Toda a história dessa cidade vai sendo devastada pelo poder oficial, deixando uma tristeza profunda nos moradores, que são deslocados para uma nova cidade chamada de Nova Jaguaribara. Não casualmente, o número de casos de depressão e infartos aumentam após a mudança dos moradores. 

Uma das cenas mais impactantes de "Memórias da chuva" é o momento em que os moradores de Jaguaribara precisam levar os corpos de seus familiares para o novo cemitério. O sofrimento de ter que desenterrar esses corpos para levá-los em caixas de alumínio é impactante, em especial o de um senhor que precisa levar o corpo do sobrinho adolescente que mesmo depois de 6 anos de morto continua com o corpo intacto. Outro instante impregnado de tristeza é o da partida, quando todos olham pela última vez para o lugar em que passaram toda a vida. 

"Memórias da chuva" se relaciona muito com uma ideia de memória, de como guardá-la ou preservá-la quando quase nada de material mais existe e o território em si não existe mais, virou somente uma grande extensão de água. Interessante como os moradores criaram na nova cidade construída um muro com as placas das ruas da antiga cidade. Wolney vai resgatar o processo de luta dos moradores para impedir a mudança e depois a organização para que a nova cidade funcione e permita que as pessoas, de alguma forma, retomem suas vidas nesse novo lugar. Tudo leva a crer que as pessoas se distanciaram mais quando foram morar em Nova Jaguaribara, pois a nova cidade era maior e espaçou as moradias. Há ainda uma mobilização para que a cidade mantenha o nome Jaguaribara, com a inserção  apenas da palavra Nova antes do nome antigo, ao invés de mudar para Tassilândia (em referência ao governador Tasso Jereissati) que era a proposta oficial. A população entendeu o quanto era fundamental para os moradores preservar parte do nome como uma incorporação memorialística, para que se mantivesse a origem daquela população.  

O filme vai passeando pelo tempo, passa pelos anos 1990, os anos 2000 até chegar aos nossos dias. Wolney entrevista os moradores em relação à expectativa da mudança e depois registra o que aconteceu depois de 20 anos na nova cidade. Tem uma personagem que à certa altura diz que a destruição das casas antigas é como assistir uma pessoa morrer. E mal sabia essa moradora que essa morte seria dupla: primeiro com as escavadeiras derrubando casas, comércio e igreja antes da ocupação da água; e por último, quando os moradores vêm a água dos açudes irem ano a ano secarem, permitindo que se pudesse ver alguns vestígios das construções e ruas antigas que conformavam a cidade de Jaguaribara. 

Um dos pontos mais importantes que Wolney Oliveira consegue amarrar à sua narrativa é a camada da política. Ao pontuar a todo o momento esse viés, o diretor constrói uma visão crítica sobre a relação entre o poder público e a população, e esse é um dos aspectos mais impactantes que "Memórias da chuva" nos deixa, o do descaso dos políticos. Mas em paralelo, se constrói uma outra imagem, a da força e consciência da população acerca dos limites das conquistas de suas lutas, mas sem nunca deixar de lutar. Esse vigor da população nos remeteu de imediato a Bacurau, filme icônico de Kleber Mendonça Filho, só que "Memórias da chuva" não está revestido por uma aura fabular como a obra pernambucana, mas sim está  posta dentro de um viés realista, de uma resistência plausível. A tarefa mais difícil de assistir a esse singelo e pungente filme, é  tentar não se envolver com essa história, embebida de tanta dor e luta por justiça.                                      

       

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