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PARA ONDE VOAM AS FEITICEIRAS (2020) Dir. Eliane Caffé, Carla Caffé e Beto Amaral


A performance como estratégia de resistência e diálogo

Texto de Marco Fialho

"Para onde voam as feiticeiras" é o novo e instigante trabalho da premiada diretora paulista Eliane Caffé, que desta vez divide a direção com a irmã Carla Caffé e Beto Amaral. O filme transita entre o documentário e a performance ao reunir a voz de sete artistas engajados em coletivos LGBTQIA+, pretos, indígenas e sem teto, que ocupam um pequeno espaço de uma rua do Centro de São Paulo para criar performances provocadoras em relação aos transeuntes. A todo instante, tanto a cidade quanto a equipe do filme se colocam como personagem, aparecendo em diversas cenas. A equipe sistematicamente pode ser vista ora segurando a câmera ora o boom do som, assim como os diretores são flagrados constantemente em conversas com os personagens, assim como a própria população, que vai passando e se surpreendendo e reagindo. Esse efeito surpresa, das pessoas passarem e serem pegas desprevenidas com aquela ocupação pública, garante ao filme frescor, mas também tensão, pois as reações são sempre na ordem do inesperado.

A maioria dos sete artistas escolhidos não se conheciam e o filme também é um exercício de convívio entre grupos políticos e coletivos que teoricamente deveriam ter muitas afinidades, mas que na prática possuem grandes embates e diferenças. Mas o interessante é que esses grupos, em certo momento, em especial quando Érika Hilton participa como convidada, também vão questionar a diretora sobre o seu poder como um corpo branco e colonizador tanto ao mostrar seus corpos quanto ao de parar de filmá-los na hora que bem entender, isto é, ela tem o poder de dar e tirar a voz. 


Os três diretores desse projeto, demonstram muita ousadia ao propor esse formato de filme. Da mesma forma que Eliane Caffé já havia adentrado uma ocupação de um prédio em "Era o Hotel Cambridge" (2016), agora ela topa mais um desafio, agora com um risco maior, afinal, os artistas estarão nas ruas com seus corpos considerados socialmente desviantes e mais desprotegidos do que se estivessem em espaços mais controlados. Não se pode dizer que o resultado a nível macro dessa experiência seja surpreendente. O que vemos são diversos momentos em que os preconceitos se afloram na população, por conta ainda de uma grande desinformação sobre esses corpos e pela própria herança colonizadora presente na cultura brasileira. 

Há momentos significativos do embate entre esses corpos que lutam e guerreiam para se afirmarem em uma sociedade que não quer aceita-los como são. E a parte mais expressiva disso se dá em uma roda na rua, onde um pregador os confronta com ideias conservadoras e tenta enquadra-los como corpos em pecado. Para equilibrar essa cena, a produção do filme habilmente convidou o Pastor (hoje também deputado federal) Henrique Vieira, que com sua verve e inteligência pode levar à discussão uma palavra religiosa evangélica e tolerante ao condenar os preconceitos que estavam sendo ditos pelo pregador homofóbico. Mas em todas as cenas, os sete artistas estão sempre se colocando em diálogo com os passantes, defendendo os seus pontos de vista afirmativos em relação aos próprios corpos, sempre vítimas de agressões, LGBTfobia, feminicídio e genocídios étnicos no Brasil. 


Esse documentário realmente se coloca permanentemente em uma corda bamba e resolve tudo muito bem ao dar aos artistas a coautoria do roteiro, mesmo que o argumento originalmente tenha partido da diretora Eliane Caffé (que a todo instante aparece nas falas como Lili). Aos poucos sentimos o quanto eles vão se sentido à vontade com a câmera e o filme assim vai deslizando deliciosamente pelos nossos olhos e corpos. Tudo nesse filme possui algo de inspirador, talvez pelo carisma de todos os sete artistas, que se tornam cúmplices do jogo proposto, mesmo que vez por outra questionem a superioridade da posição hierárquica dos diretores no projeto em relação aos personagens. A montagem, assinada pela própria Eliane Caffé, é um dos pontos mais cruciais desse filme, que intercala imagens da ocupação pública com outras incríveis e variadas de arquivo, além de clipes musicais com uma fluência espantosa.  

Das imagens de arquivo que vislumbramos em "Para onde voam as feiticeiras", uma das mais significativas e expressivas são as que mostram diversos momentos não muito distantes no tempo, que registram a luta dos nossos povos originários pelo direito de ter suas terras demarcadas, de exigirem que os corpos indígenas não sejam mais exterminados pela ganância do homem branco. À certa altura, uma líder Guarani pergunta na Câmara dos deputados se foram os indígenas que poluíram os rios e estão a matar os peixes e os demais animais. Numa outra, um fazendeiro ameaça abertamente mata-los, caso eles não saíssem de "sua terra". O fazendeiro chega a bater na terra afirmando ser o dono legítimo delas, e ouve uma indígena a dizer que aquela terra não pode pertencer apenas a uma única família, porque para os povos originários aquela terra é para uso coletivo desde antes 1500, quando só os portugueses por aqui chegaram. 


É muito instigante assistir a tentativa de reunir corpos diferentes e tentar provocar um diálogo entre essas diferenças. São corpos trans, gays, lésbicos, bissexuais, pretos, indígenas que formam uma pluralidade de possibilidade de existência, e todos dispostos a lutarem para apenas existirem e resistirem como são, sem favores ou benesses, mas sobretudo sem preconceitos. Claro, que tentar equalizar interesses entre esses grupos identitários não é tarefa fácil, embora haja hoje um esforço para que aconteçam alianças, com cada um reconhecendo os momentos em que a fala e a escuta de cada grupo são necessárias. O filme é também sobre esses conflitos, que às vezes parecem incontornáveis, mas ao final é possível ver que há uma luz no fim do túnel e uma possibilidade real de entendimento dentro das diferenças. 

A beleza em "Para onde voam as feiticeiras" está em mostrar e acreditar que falas e escutas são os elementos mais transformadores, tanto entre os grupos agredidos sistematicamente pela herança deocolonial quanto para os próprios brancos, héteros e cis que precisam refletir, conhecer e respeitar a liberdade de cada corpo. Esse é um filme que provoca essa reflexão ampla sobre um tema tão urgente, que lança uma esperança de convivência pacífica e respeitosa em nosso país, para que não se mate mais seres humanos cuja orientação sexual não seja a da padronização opressora oriunda do patriarcalismo brasileiro. Eu diria que este é um filme performance, intervencionista e corajoso ao levar às ruas um confronto social dado, uma discussão que não pode mais ser posta para debaixo do tapete, que precisa estar tão evidente quanto o raio de sol que rompe a madrugada todos os dias.



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