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DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS (1976) Dir. Bruno Barreto


Quando o público tinha um encontro marcado com o nosso cinema

Texto de Marco Fialho

O ano é 2023, o filme, "Dona Flor e seus Dois Maridos", de 1976, em 35mm. O impacto temporal é  imenso, mas o emocional é maior. Depois de quase 50 anos, é natural que a obra fale muito sobre um mundo bastante diferente do nosso, mas o encanto está lá reluzente a nos seduzir. O diretor Bruno Barreto realizou um filme que ainda hoje é uma das maiores bilheterias do cinema brasileiro, com quase 11 milhões de espectadores, ultrapassado recentemente em valores absolutos por "Minha mãe é uma peça 3" (2019) "Tropa de Elite 2" (2010). 

A primeira impressão que se pode tirar de "Dona Flor e seus Dois Maridos" é de seu frescor narrativo, do quanto prazeroso esse filme se revela aos nossos olhos e corpos. E os motivos são vários. Primeiro, a história cativante de Jorge Amado, temperado por uma brasilidade baiana sedutora. Segundo, pelos protagonistas maravilhosos escalados: Sônia Braga em sua exuberante beleza brejeira e morena, com seu talento para expressar os trejeitos brasileiros como poucas. Mauro Mendonça com uma economia de gestos que inspira o cômico. E o que dizer de José Wilker, um furacão em cena, um Vadinho de encher os olhos, numa das grandes interpretações do cinema brasileiro.


"Dona Flor e seus Dois Maridos" possui uma leveza que vem do roteiro e se instala em uma estrutura dramática que consegue equilibrar drama e comédia de costumes. A sensualidade dos personagens é o grande atrativo dessa história que começa em um Carnaval em 1943, com a morte fulminante de Vadinho. A partir de então, a história se encaminha para flashbacks que narrarão o passado de Vadinho e o seu casamento com a bela Flor. O que chama atenção é o comportamento machista de Vadinho, que chega aos raios da violência verbal e física. Talvez esse seja um elemento que tenha passado desapercebido pelo público à época, mas visto aos olhos de hoje, chega a ser escandaloso. 

Mas aos poucos, o humor vai predominando e levando a trama charmosamente para frente. O fantasma de Vadinho passa a assediar Flor, agora casada com o bem comportado farmacêutico Theodoro. Se Vadinho era o homem desregrado e amoral, Theodoro é o marido certinho, mas sem criatividade nos momentos mais íntimos. A música "O que Será?", de Chico Buarque, a todo o instante reafirma o tom apimentado da história, fazendo referência inclusive ao governo ditatorial dos militares brasileiros: "o que não tem governo, nem nunca terá". A história de fantasma também é outro atrativo dessa história, já que apenas Flor conseguia ver Vadinho. 


A religiosidade popular e a joça fazem parte desse enredo engraçado e sensual. O conservadorismo dos costumes está presente em vários personagens coadjuvantes, os típicos fofoqueiros e protetores da moral de uma Salvador dividida entre o catolicismo hipócrita e o candomblé. Os amigos de Vadinho dão o tom cômico e despojado do filme. O cassino, o bar e o prostíbulo são os ambientes prediletos de Vadinho e seus amigos, todos chegados a uma bebida que passarinho não bebe. 

Rever "Dona Flor e seus Dois Maridos" foi uma experiência única, ainda mais com a presença de Bruno Barreto discutindo o filme depois da sessão. Em última instância, esse é um filme onde nota-se um estilo de direção em relação a interpretação dos atores, com corpos mais soltos, que causavam um maior estranhamento nos espectadores, marcado por um certo exagero nas atuações, mas que aos poucos foi abandonada em nosso cinema. Hoje, os cursos de interpretação de atores preparam os atores para uma formação mais naturalista, moldada em modelos mais clássicos e hollywoodianos. Celebrar "Dona Flor..." é também reconhecer que nós podemos sim criar modelos próprios de construção dramatúrgica e coadunados com o sucesso popular.

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