Texto de Marco Fialho
A diretora Alice Rohrwacher tem se revelado uma artista criativa, que caminha em um terreno instável entre a realidade, o onírico e a história. Antes de La Chimera, filmou dois longas consistentes: Lazzaro Felice (2018) e As Maravilhas (2014). Considero Alice uma herdeira cinematográfica profícua de Federico Fellini, por essa capacidade fantástica de falar da Itália por meio de imagens vindas do universo popular, juntando fábula com um realismo.
La Chimera já se contamina pelo onírico logo na cena de abertura, onde Arthur (Josh O'Connor) é transpassado por uma dupla imagem de um sol inatingível, um que está tatuado nas costas de sua amada Beniamina (que encontra-se desaparecida ou morta) e um que ele vê se perdendo em um pôr-do-sol numa viagem de trem que o leva de volta à Toscana em busca desse amor perdido. Ele esteve preso por violar túmulos etruscos no passado, junto com um grupo de bandidos ordinários, e agora vai continuar a vagar entre o passado e o presente, quem sabe numa improvável reconciliação com ambos.
Arthur, em sua volta, reencontra Flora (Isabella Rossellini) a misteriosa, decadente e fúnebre sogra, e suas várias filhas, que espera que o rapaz encontre a filha Beniamina (Yile Yara Vianello) utilizando seu dom da chimera, capaz de achar relíquias perdidas do passado. Alice Rohrwacher centra a narrativa em Arthur, um personagem enigmático, com poucas falas e ansioso por encontrar um lugar no mundo, entre sonhos, chimeras e as dificuldades práticas da vida. A incrível fotografia contrabalança com competência um visual entre o realismo e o onírico, há uma camada, um filtro, que deixa um tipo de névoa na imagem e os figurinos oscilam entre o antiquado e o luxo, assim como os cenários que perfazem as dicotomias presentes no filme. Ora estamos em um barco luxuoso, ou uma casa suntuosa antiga, ora nos deparamos com uma moradia precária. O mundo imagético é sempre parte de um imaginário caótico, impreciso e provisório, mesmo que a história pareça engolir a todos com sua fúria implacável. O poder insiste em domesticar a história para quem sabe perpetuar os seus privilégios. Maior do que as ambições pessoais só os sonhos de cada um. Neles habitam sempre esperança de redenção e amor. E assim Alice Rohrwacher conduz sua narrativa, sempre atenta aos dois universos: o do real e o do sonho. O difícil às vezes é precisar qual estamos assistindo.
Entretanto, eis que no meio de uma atmosfera estranha, aparece uma mais exótica ainda, a presença de Itália, a atriz brasileira Carol Duarte, de A Vida Invisível (2019), filme dirigido por Karim Aïnouz, uma personagem que como ele, também está em busca de algo, apesar de ser terrivelmente explorada como empregada por Flora. Desde o primeiro contato entre Arthur e Itália há um encontro de almas atormentadas pelo mundo que os cerca. É o encontro mais profícuo de La Chimera, são encontros recheados de graça, ternura e esperança. Ambos são pessoas maculadas que almejam um canto de harmonia, pois estão atormentados por uma sociedade cruel, desumana, ambiciosa e mesquinha.
Arthur e Itália são a esperança de redenção de um mundo sem rumo, desorientado pelo dinheiro fácil e a exploração classista. A câmera de Rohrwacher nada mais faz que persegui-los implacavelmente, sabe que não pode deixar de registrar a pureza que estão nos olhos de ambos os personagens. Ele rouba preciosidades históricas de uma Itália já morta, tão morta quanto a presente e é isso que Alice Rohrwacher faz, mostra um passado que beira o mitológico nos subterrâneo e o contrasta com a favela caindo aos pedaços em que mora Arthur. Ambos são estrangeiros espoliados pelos que se dizem donos das terras, embora a riqueza não esteja propriamente ali naquele território. Entretanto, esse mundo subterrâneo, aos poucos, revela mais do que riquezas de um passado. O que submerge dele é algo mais profundo, rituais fúnebres e estranhos que mostram que as organizações sociais já desaparecidas pelo tempo operavam por castas, em que pobres e ricos possuíam distinções na vida e na morte. Parece a história da humanidade se repetindo eternamente com suas infames injustiças.
E no presente, o que é revelado quanto à hierarquização social? Ricos no filme só Spartaco (Alba Rohrwacher) e sua turma, que vende aos igualmente ricos da elite italiana as relíquias etruscas que Arthur e os seus comparsas ladrões de túmulos extraíam dos mortos, para que suas casas e empresas possuam objetos de valor histórico. É o uso da história, ou do que restou dela, como imperativo de poder, riqueza e distinção. Em suma, quem controla a história manipula o mundo e o tem em suas mãos. Ao final, não é a história quem soterra Arthur, mas sim o poder de quem a domina e controla, embora isso não seja o bastante para interromper o amor maior e um sonho.
O uso do som é fundamental em La Chimera para se criar um ambiente que lembra tudo, menos a vida na Terra. Rohrwacher sabe revirá-lo de maneira a torná-lo o aspecto quase sobrenatural do filme. Por através dele reafirma um mistério permanente e irreal na trama. Ainda tem a música de dois músicos locais que ajuda na narração e ratifica o estranhamento que perambula e infesta a obra de Rohrwacher. A ópera se estabelece igualmente como mais uma camada histórica, como um elemento a descortinar o ambiente decadente de uma Itália provinciana e anacrônica que teima em sobreviver na contemporaneidade. O mais interessante é que essas camadas sublinham tanto o estranho quanto um certo encanto caminham de mãos dadas, o que permanentemente nos prende ao que estamos assistindo na tela. É nesse momento onde se demarca o estranhamento entre a história e o presente que a obra de Rohrwacher se encontra espiritualmente com a de Fellini, para sublinhar o anacrônico e os elementos arcaicos que persistem numa cultura secular.
É impressionante como o filme de Alice Rohrwacher sabe explorar as contradições de todos os personagens, tornando tudo tão estimulante, atrativo e rico. A cidade e o país falam por intermédio dos personagens, corporificam o ilusório (a quimera) e o espírito ganancioso que move a história humana na Terra. Às vezes, o humor margeia o enredo, sem jamais se concretizar como tal, ele serve mais como um prenúncio irônico do destino trágico do que um fato concreto ou uma situação precisa. La Chimera é mais uma pérola de Alice Rohrwacher, um trabalho de carpintaria visual e sonora muito bem pensado, um talento que vem, filme a filme conquistando um estilo próprio e se consolidando como uma cinematografia pessoal, com um universo cada vez mais identificável.
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