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SEM CORAÇÃO (2023) Dir. Nara Normande e Tião


Texto de Marco Fialho

Sem Coração, dirigido por Nara Normande (Guaxuma, de 2018) e Tião (Animal político, de 2016), foi selecionado para participar da mostra Orizzonte, no 80° Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 2023, tendo sido muito bem recebido à época. Para mim, o filme funcionou como uma viagem sensorial a um universo muito próprio, o de um lugarejo praiano não urbanizado, a princípio sedutor, mas que aos poucos revela os matizes da desigualdade socioeconômica brasileira.  

O que a diretora e o diretor de Sem coração costuram a todo instante são as camadas que vão sendo desvendadas, em especial, as discrepâncias entre o mundo dos despossuídos e dos que vivem do privilégio inerente à sua histórica condição social. Esse é o cerne desta obra profundamente sensível, que se mostra empática com muitos dos personagens, em especial com Duda (chamada de Sem coração devido a uma cicatriz que tem no peito), interpretada com muita sensibilidade por Eduarda Samara, e com Tamara, em uma impecável atuação de Maya de Vicq, uma menina de classe média que se encanta por Sem coração. Outros dois personagens também recebem uma atenção especial como coadjuvantes, Alaylson Emanuel, no papel do marginalizado Galego, e Isaac, um menino negro se descobrindo gay em meio a uma sociedade preconceituosa e subterraneamente muito violenta.   

Algumas cenas são muito tocantes e possuem uma mise-en-scène bem construída, principalmente por serem ambíguas e misteriosas. Em uma delas, Tamara conversa no colo da mãe sobre o medo de viver algo pela primeira vez. Enquanto a mãe (na única cena em que Maeve Jinkings consegue entregar o seu grande talento) acha que a filha fala sobre a entrada na faculdade, ficamos na dúvida se a menina não estaria a pensar na atração que sente por Sem coração. É uma cena dúbia, imprecisa, porém íntima, conduzida pela canção Iansã, cantada belamente por Maria Bethânia, que acentua o quanto a conversa era sobre os sentimentos de Tamara por Sem coração, já que a letra da canção menciona o mar e Sem coração é uma filha de pescador que conhece o fundo do mar como poucos. Pra mim, uma das cenas mais bonitas do cinema contemporâneo brasileiro.

É bastante oportuna a maneira como Nara e Tião conduzem a história e separam o mundo dos adultos do mundo dos adolescentes. No primeiro reina a divisão classista, já no segundo há uma tendência a uma relação mais horizontalizada, solidária e de amizade, sem preconceitos. A câmera ostenta essas tensões sendo ora mais descritiva com os adultos ora mais íntima entre os mais jovens. Essa separação de mundos etários é interessante para o filme, ainda mais mais quando a violência e o preconceito do mundo adulto invade e mata os mais jovens. Entretanto, a despeito da violência social, esses jovens cultivam uma amizade bonita e solidária, realçada em uma cena na praia em que ocorre um abraço coletivo entre eles, logo após Isaac sofrer uma agressão LGTBfóbica em uma festa noturna. Esse abraço está para além das diferenças de classes, etárias (pois tem um menino mais jovem que eles) e de cor de pele. Mais um primor de cena.

Sem coração trabalha bem a diferenciação social pela própria construção da imagem. Quando observamos a fotografia imprimir um clima de um mistério perene na camada mais visível do filme, como se a intenção fosse criar uma ideia mitológica do lugar, ou acentuar um determinado imaginário que este território enseja, em especial para quem vem das grandes cidades. A imagem da baleia aparece três vezes, em duas delas como sonho, e em outra como um fato verídico à beira-mar. Nos sonhos ela salienta o mistério, um mundo e sentimentos a serem descobertos pelos personagens. Já na que aparece na praia, a baleia me remeteu ao filme 8 e 1/2, a obra-prima de Federico Fellini, como uma grande metáfora sobre uma natureza que não dominamos nem conseguimos controlar.  

A personagem Sem coração é aquela que guarda mistérios. Ela é a única das personagens jovens que não participa do grupo. Sem coração trabalha o dia inteiro levando peixes para clientes de seu pai, embora não se furte a prestar favores sexuais secretamente aos meninos que participam do grupo. A casa em que mora é humilde, tipicamente de pescadores, que nem sempre conseguem pescar devido ao tempo ou alguma intervenção humana, como lanchas e outros veículos marinhos que espantam os cardumes. Sem coração representa essa população que precisa trabalhar para comer, mas que se alimenta de sonhos também. Se Galego aceita a marginalidade como caminho, na venda de drogas, Sem coração e seu pai vivem do trabalho irregular e braçal da pesca. A doçura dela vai sendo lentamente exposta pela narrativa que alcança seus medos, sonhos e desejos. O encontro dela com Tamara é de uma sensibilidade cativante. Inclusive cabe registrar que Tamara guarda um olhar de beleza no decorrer do filme. O seu olhar para Sem coração é de encantamento, enquanto precisa resignar o coração por ter que ir estudar em Brasília.

Sem coração é encantador por estabelecer uma série de camadas, mas sem perder de vista que o seu ponto de vista para a história está fixada nos jovens, e mais especificamente em Sem coração e Tamara. O pano de fundo está ali, a história se descortina em 1996, no mesmo período em que PC Farias, o ex-tesoureiro da campanha de Fernando Collor de Mello é assassinado na mesma praia em que a narrativa se desenvolve. Sem coração discute esse país profundo, para além das grandes cidades, desigual, entretanto que ainda guarda um afeto esperançoso que pode ser regenerador e assinalar um outro futuro para o mundo, hoje dominado pelo arrivismo e o egoísmo.

Comentários

  1. Interessante a contextualização. Derrepente caberia uma dupla sessão com o documentário "Morcego Negro". Um grande abraço de urso.

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