A sonata cândida de Escorel
Texto de Marco Fialho
"Antonio Candido, anotações finais", de Eduardo Escorel, se desenvolve para os espectadores, ou melhor, ouvintes, como uma sonata. O diretor parte de seus cadernos, escritos desde à infância, centrando nos pensamentos registrados nos três últimos cadernos, de 2015 a 2017. O caráter diminuto da proposta formal não o desmerece como documentário, muito pelo contrário, o expande por concentração, de um mínimo que se torna gigante na tela, tal como as sonatas de Beethoven, que aliás, inundam nossos sentidos durante a projeção e imantam a nossa atenção.
Escorel consegue aqui dar uma aula de reconstituição histórica e memorialística como poucos. Em mãos, tem-se pouco, os cadernos de anotações de Candido e algumas imagens de arquivo desse grande intelectual. A grandeza do pensamento de Antonio Candido explode a cada nova revelação que este nos faz, tendo a voz precisa e aveludada do ator Matheus Nachtergaele pontuando a narrativa. Quem aqui nos conduz é a voz de Candido/Nachtergaele, lendo suas anotações finais, lembrando que Candido era um nonagenário beirando o centenário.
A poesia de "Antonio Candido, anotações finais" está em cada frame, em cada construção que o mestre Escorel realiza pela montagem que não deixa arestas, que costura ano a ano reflexões profundas sobre a vida, feitas por uma inteligência privilegiada que foi Antonio Candido. O filme de Escorel cria, tal como uma sonata, uma expectativa sobre o devir das palavras de Candido. Há uma angústia que o próprio pensamento de Candido provoca, em especial como o pensador trata da proximidade da morte. Escorel captura o tempo, o espreme para retirar dele os últimos suspiros poéticos de Candido. Esse escalonamento do tempo, em uma crescente obsessão pelo inevitável nos toma como se a vida de Candido fosse a nossa. Afinal, o tempo que se esvai para ele também está passando por nós.
Como é instigante ver a maneira como Candido pensava o mundo. Escorel sabe pinçar o quanto argutas são as articulações que o escritor fazia ao refletir sobre as artes e o seu tempo. Interessante notar como o pensamento político estava presente constantemente em suas ideias. Pensar a literatura e o mundo juntos, essa foi uma contribuição indelével desse escritor fenomenal. A angústia que Candido sentiu ao ver o mundo político brasileiro e mundial se degringolar aos seus olhos já velhos e cansados. A fragilidade de suas pernas parecem acompanhar os percalços do Brasil, que viu a extrema ignorância e burrice crescerem em uma escalada vertiginosa.
Outra chama poética que o filme acende é na relação de Candido com a esposa Gilda. Os testemunhos melancólicos em que a imagem dela ficava ali flutuando na tela para dar um nó a mais na garganta. Pensar a vida do país, mas igualmente a sua, nessa interseção entre o indivíduo e o coletivo, um sempre em comunhão com o outro, em um belo exercício de lucidez, o que faltou muito no Brasil dos últimos anos invadido pelas fake news da extrema direita. Mas há algo de nobre no viver de Candido. Ser o último de sua geração a morrer, testemunhar ao desmoronamento da vida dos seus e ter a certeza que isso está assinalando também o seu fim.
"Antonio Candido, anotações finais" é uma joia que só o cinema pode nos dar. O enredar de emoções nas revelações de um diário íntimo que agora nos chega e arrebata. As confissões poéticas de quem viveu se dedicando à literatura, uma ode à poesia e a beleza de existir. É de arrepiar ver a câmera passear pelos cômodos de Candido, de ver a biblioteca que tanto alimentou textos cruciais para quem escreveu tanto sobre livros. Como não se encantar ao ouvir Candido refletir sobre o seu ofício e dizer que buscou reduzir a vida em palavras, para quem sabe dar a elas uma sobrevida. "Antonio Candido, anotações finais" realmente me soou como uma sonata deliciosa de se ouvir. Obrigado Escorel por tanto, meus ouvidos e olhos agradecem.
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