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DESTAQUES DE FILMES ESTRANGEIROS 2022


Foi um ano muito difícil ainda para acompanhar em especial os lançamentos no cinema, devido à pandemia da Covid-19. Não fiz lista nos últimos dois anos, mas mesmo assim consegui assistir a muitos filmes nas plataformas de streaming e em alguns festivais on line. Lembro que é um destaque, que não existe nem nesta lista, nem em quaisquer outras que venham propagar, algo de definitivo. O elemento subjetivo é sempre muito evidente nas listas, e assim deve realmente ser, a visão de uma pessoa, mesmo que seja essa a de um profissional da área. Por isso, fiquem à vontade para questionar, criticar ou simplesmente ler, mas lembrem que o mais importante desta publicação é o incentivo para que todos assistam a mais filmes, falem sobre eles e reflitam o mundo e o cinema a partir deles.                         

Lista em ordem alfabética:

AFTERSUN (Inglaterra)

Dir. Charlotte Wells


Um dos pontos altos dessa história relativamente simples é a enorme sensibilidade com que a diretora Charlotte Wells trata os personagens. Um filme sobre um raro encontro entre pai e filha que não moram no mesmo país. A memória detonada por meio de um filme de férias registrado pela menina em uma câmera Mini-DV. Mais do que o presente, mergulhamos não só nessas imagens, muitas vezes distorcidas e pixeladas, mas também nos acontecimentos do passado que marcaram o encontro entre pai e filha, em um hotel de luxo decadente. O carinho entre eles é revelado por pequenos gestos. O espectador encontra nesse filme a força e o prazer da sutileza pelo cinema, o toque feminino da diretora está posto em vários momentos e isso é encantador. Aftersun nos mostra que a vida está para além de uma mofada VHS, felizmente.  


ARGENTINA, 1985 (Argentina)

Dir. Santiago Mitre


"Argentina, 1985" mostra a importância da memória para a vida de um país. Como brasileiros ficamos a nos perguntar, envergonhados, porque não fizemos o mesmo em relação aos nossos ditadores: colocá-los no banco de réus e julgá-los como criminosos que realmente foram. Ricardo Darín está excelente como o promotor Strassera. Se não fosse por uma pequena derrapada no uso melodramático da música em dois momentos cruciais do filme, "Argentina, 1985" seria uma obra impecável, um perfeito e irretocável filme de tribunal. A limpidez da narrativa clássica do filme de Mitre se sobressai pela competência que o cinema argentino tão bem sabe realizar, em especial quando o tema político está a guiar a trama.
 


DRIVE MY CAR (Japão)

Dir. Ryusuke Hamaguchi

Em "Drive my car" as narrativas tornam-se as grandes protagonistas da trama e Hamaguchi traz uma discussão para lá de oportuna sobre elas. Dizem os historiadores que a arma mais eficaz das guerras contemporâneas é a das narrativas. Por meio delas o mundo se organiza, cabendo aos vencedores impor a sua versão dos fatos, até que alguém faça ressuscitar uma narrativa que a contradiga. A obra de Hamaguchi teoriza agudamente sobre o tema e ao fazer isso, ele abre um debate sobre o poder no cotidiano das grandes cidades, pois nele é que encontramos as vozes de pessoas comuns continuadamente invisibilizadas que refletem sobre o passado. Há narrativas que são sociais, e outras, que aparentemente perpassam somente o indivíduo. As duas são importantes e relacionam-se intrinsicamente. Ambas as perspectivas estão inseridas em "Drive my car". Quando uma cidade ou país faz um monumento sobre a explosão atômica, se consubstancia ali um viés narrativo e quando uma pessoa narra uma história fazendo sexo, ali na intimidade, nasce também uma outra construção narrativa. O tema é complexo, e jamais se encerrará em um texto, mas Hamaguchi torna plena a beleza dele em "Drive my car", ao saber dosar com maestria, as narrativas presentes tanto no corpo quanto nos objetos. Para ele, filosoficamente, o poder das artes está na capacidade de condensar a pluralidade das narrativas existentes, sempre as confrontando e "Drive my car" é um magnífico exercício a serviço dessa ousada ideia narrativa. Se o mundo precisa de narrativas, Hamaguchi também não passa incólume por essa obsessão, cada vez mais urgente na contemporaneidade.

Crítica completa no link: DRIVE MY CAR (2021) Direção Ryusuke Hamaguchi (cinefialho.blogspot.com)


ENCONTROS (Coreia do Sul)

Dir. Hong Sang-soo

Realmente, cena a cena Sang-Soo parece nos conclamar à contemplação da vida, mas não só. Ele também incita que conversemos sobre ela, que façamos das conversas a nossa maior protagonista, mesmo que delas resultem mais desencontros do que encontros. O álcool, contraditoriamente, atua nas conversas como catalisador de discordâncias, já que a sinceridade que ele propicia, acende a chama de infinitas discussões. Por isso, o cinema de encontros de Sang-Soo se vira rápida, e até astutamente, em um cinema dos desencontros. E a nossa vida seria assim tão diferente dessa proposta de ficção desse diretor sul-coreano? Esse é o maior encanto que ele nos oferta com o seu cativante cinema. 

Leia a crítica completa no link: ENCONTROS (2021) Direção Hong Sang-Soo (cinefialho.blogspot.com)


A FELICIDADE DAS PEQUENAS COISAS (Butão)

Dir. Pawo Choyning Dorji


"A Felicidade das pequenas coisas" vai fundo nesse mundo que deixamos para trás enquanto humanidade, de uma vida simples e em harmonia com a natureza, com os valores de preservação e interação, não de destruição como nos acostumamos hoje em dia nos centros urbanos. O conceito de comunidade faz com que o coletivo busque a colaboração e a união como princípios constitutivos da sociedade. Quando o protagonista chega em Lunana, o que vemos é o som do lugarejo invadir a tela, nos mergulhando na simplicidade e na paz de espírito. A música pop que antes predominava vai sendo posta de lado para ouvirmos o entoar das belas músicas locais. A cada cena, vemos o jovem professor aprendendo mais do que ensinando, o que muito diz sobre um mundo contemporâneo altamente desenvolvido tecnologicamente, mas pouquíssimo conectado com valores essenciais e comunitários. O baú que lhe fora apresentado como do antigo professor está mais cheio quando Ugyen volta para a sua cidade de origem. Mas Lunana também representa uma origem, a da humanidade quando esta ainda não sonhava tanto em progredir economicamente. 

Para ler a crítica completa acessar o link: A FELICIDADE DAS PEQUENAS COISAS (2019) Direção de Pawo Choyning Dorji (cinefialho.blogspot.com)


LICORICE PIZZA (Estados Unidos)

Dir. Paul Thomas Anderson

Estruturalmente, "Licorice Pizza" se organiza não em um conceito de continuidade óbvia, mas em blocos consistentes, cada um muito bem alinhavado com o seguinte em uma espécie de permuta criativa, pensado numa ordem que cria um desenho perfeito, uma crônica amalucada de um país convulsivo, e sem freios para a falta de noção. Por isso, o ritmo do filme é ditado por uma ideia de movimento e velocidade. PTA filmou vários planos com a dupla protagonista correndo e cenas em carros em movimento, o que torna tudo um universo muito sedutor. Sim, o filme é sobre esse país doido onde tudo pode acontecer, onde um adolescente pode se tornar um milionário pela perspicácia. Algo interessantíssimo em "Licorice Pizza" é que a trilha musical já parece ter sido composta premeditadamente para alimentar esses sonhos juvenis de Gary e Alana. Quem desmentiria que "Peace frog", do "The Doors" não foi composta especialmente para aquela sequências da super venda do colchão d'água? E "Let me roll it" de Paul McCartney para o auge da relação Gary/Alana com eles delirando no colchão d'água? E a cena que vem logo a seguir, com a notícia da crise do petróleo com a música "Live in mars?", de David Bowie, que atesta a loucura desse mundo? É PTA transformando tudo que está no universo filme como dele. É o cinema e o poder do cineasta de criar um mundo todinho seu. Isso é resultado de muito trabalho com certeza, embora aliada a uma demonstração de grande talento para o ofício cinematográfico, o que sabemos que PTA tem de sobra, vide a bela filmografia já construída. 

Acessar a crítica completa no link: LICORICE PIZZA (2021) Direção Paul Thomas Anderson (PTA) (cinefialho.blogspot.com)


MEMÓRIA (Tailândia)

Dir. Apichatpong Weerasethakul


"Memória" também fala de uma relação com o invisível, com o mundo das bactérias, fungos e outros micro-organismos que convivemos em nosso mundo. Tal como em "Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas" (2010) Apichatpong está a refletir sobre um mundo onde para compreendê-lo precisamos nos conectar com nossas intuições, nossa animalidade essencial e especialmente com a ancestralidade. Jessica representa os seres humanos ocidentalizados, aqueles que levaram a racionalidade ao extremo, apelaram para o avanço sem freios dos meios tecnológicos, desequilibraram a relação com a natureza, abusaram dela ao máximo até se desconectar por completo do mundo natural. Para a natureza ser entendida como fonte de autoconhecimento é preciso antes desfruta-la e não apenas estudá-la com finalidade medicinal ou qualquer outro aspecto acadêmico. O conhecimento essencial vem de uma vivência, não só de um estudo. Apichatpong discute isso, confronta não só os mundos mas os modelos de mundo, o que cada um tem a oferecer, mas o faz com a sutileza que lhe é própria, não desqualifica as culturas, as entende dentro do seu processo civilizatório.

Acesse a crítica completa no link: MEMÓRIA (2021) Direção de Apichatpong Weerasethakul (cinefialho.blogspot.com)


O PERDÃO (Irã)

Dir. Maryam Moqadam e Behtash Sanaeeha

Um filme realmente impressionante, de grande força dramática, onde o tema está sempre colocado além das imagens e dos diálogos. A opção de manter planos fixos também sublinha a estagnação do Estado islâmico. Há, no início e no fim, uma imagem de uma vaca branca. A protagonista trabalha inicialmente numa fábrica de leite, assim como há uma sequência de envenenamento com leite. Sim, há aí um simbolismo opressor, visto que um dos grandes personagens do filme é o aparelho de Estado, que sempre aparece como burocrático, corrupto e injusto. A cada nova cena, "O perdão" vai sublinhando uma situação de grande injustiça e vai imperando uma convicção de que há uma estrutura social carcomida por ideias defasadas e opressoras. Ao final, o tanto de perdões a serem pedidos e concedidos revelam a fragilidade do sistema machista iraniano. Um filme para não piscar um só minuto sequer. 


VITALINA VARELA (Portugal)

Dir. Pedro Costa

Habitualmente vemos sempre Portugal por um viés solar e de uma beleza nostálgica, com um passado regido pela opulência que mesmo perdida no presente, persiste ainda no ideal de que lá pode-se recomeçar uma nova vida. "Vitalina Varela" mostra que para os corpos pretos e pobres nem sempre é assim. Deve-se se salientar que os brancos são invisíveis em "Vitalina Varela", pois no filme eles não estão presentes no mundo subterrâneo relegado aos pretos em sua maioria imigrantes. Pedro Costa trabalha pouco com o aspecto simbólico em 'Vitalina Varela", pois prefere agregar aos personagens imagens cruas e duras, mas há um simbolismo que deve ser mencionado aqui: a dos pés de Vitalina. Lembremos que ela assim desce do avião quando chega em Portugal, e desse mesmo modo sai da casa do marido ao final do filme. "Vitalina Varela" representa a força dessa mulher preta contemporânea, que durante a vida se dedicou a construir e esperar, sem nunca perder a esperança, apesar do mundo se apresentar historicamente como uma eterna sombra. Uma obra-prima para ficar na história e na memória.

Acesse a crítica completa no link: VITALINA VARELA (2019) Direção Pedro Costa (cinefialho.blogspot.com)


VORTEX (França)

Dir. Gaspar Noé

Sem perder a contundência de seu cinema, Gaspar Noé investe em um drama intimista sobre um velho casal que vive o ocaso de suas vidas, tendo no elenco, a participação inusitada do diretor italiano Dario Argento, em um raro e interessante momento como ator. Um filme que vem salvar a recente filmografia medíocre de Noé, calcada no mau-gosto, no egocentrismo e no exibicionismo. Noé divide a tela em duas para revelar as angústias do casal que a um só tempo dividem tanto o espaço físico quanto a mente caótica. Noé (assim como Haneke em "Amor") usa tintas fortes para pintar seu retrato sobre o conturbado final de vida do casal e para mostrar a difícil tarefa que é encarar o Mal de Alzheimer. 


HORS CONCOURS (vi em 2022, mas foi lançado em 2021, ano que não fiz lista)

ATAQUE DOS CÃES (Nova Zelândia)

Dir. Jane Campion

"Vale observar como Campion planta em quase todas as sequências referências e nuances eróticas, uma espécie de camada sutil a permear a narrativa. Primeiro revela o mais óbvio, o comportamento afeminado de Peter, que inicialmente contrasta com a masculinidade tóxica e violenta de Phil. A sequência das rosas de papel cuidadosamente modeladas por Peter destoa da reação nociva de Phil, que não só aproveita para debochar e desqualificar Peter, como acentua o conflito, ao incendiar a rosa para acender seu cigarro de palha. Mas Campion não deixa barato ao ofertar um close no dedo de Phil sendo eroticamente introduzido no centro da rosa. São sutilezas cinematográficas que abrem valiosas interrogações sobre cada um dos personagens. O elemento tóxico de Phil salta aos olhos a princípio, mas Campion vai vagorosamente desfiando as situações como se fossem uma carne cozida e macia, até que os processos contraditórios falem mais do que as aparências iniciais. A adoração da masculinidade é o que mais aproxima Phil do universo homoerótico, ele está tão envolvido e enclausurado no masculino que só consegue ver potência ali, inclusive a sexual."

Acesse a crítica completa no link: ATAQUE DOS CÃES (2021) Direção de Jane Campion (cinefialho.blogspot.com) 

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