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A FELICIDADE DAS PEQUENAS COISAS (2019) Direção de Pawo Choyning Dorji

Sinopse

Ugyen Dorji (Sherhab Dorji) tem 20 e poucos anos, e é professor, embora sonhe em se mudar para a Austrália e ser um cantor famoso. Em seu último ano de contrato com o governo, é mandado para Lunana, uma das regiões mais isoladas do mundo, onde deverá assumir uma escola infantil.

Uma luz de humanidade vinda do interior do Butão  

Texto de Marco Fialho

Alguns filmes mostram o quanto o cinema pode ser poderoso e "A Felicidade das pequenas coisas", dirigido por Pawo Choyning Dorji, é um desses bons exemplos. Assistir a uma obra vinda de país inóspito e sem tradição no cinema dá um conforto na alma, afinal como poderíamos conhecer imagens vindas do Butão? Qual seria outra maneira de conhecer um pouco da cultura desse reinado budista situado na Ásia meridional? O inesperado no cinema nos cativa e aproxima do que é cultural e geograficamente distante.

Mas só isso não basta. Um filme para nos atrair precisa também reunir qualidades cinematográficas e "A Felicidade das pequenas coisas" é rico nesse aspecto. Um dos méritos da produção está no contraste entre a modernização e a tradição. Um dos elementos que mais trabalham essa dicotomia é a trilha musical do filme, que pontua de maneira precisa as diferenças entre a cultura urbana e a tradicional. O protagonista Ugyen quer ser cantor na Austrália enquanto o governo o manda para Lunana, um dos lugarejos mais inóspitos do mundo, onde o tempo para chegada é de 8 dias. A obra se constrói como uma história épica, onde Ugyen passará por provações até chegar em Lunana, embora os verdadeiros desafios estarão na própria Lunana, uma comunidade simples, sem energia elétrica e outros confortos ocidentais. Mas as maiores joias do mundo estão escondidas, tal como um tesouro das clássicas histórias de aventura infantis. Não que a vida em Lunana seja fácil, um paraíso idílico sem problemas. As turbulências estão ali evidentes, o pai alcóolatra da esperta capitã da turma, a vida difícil de viúvo do líder local Asha, mas a parte disso existe uma vida coletiva de amparo permanente.   


Com a devida sutileza budista, lentamente o personagem vai se transformando e levando junto com ele os espectadores, pois o filme convida a nos despir das parafernálias que apesar de prometerem nos aproximar uns dos outros, apenas nos afastaram mais. Cena a cena, os dispositivos eletrônicos vão perdendo a sua razão de existir e o que sobrará são as relações interpessoais, inclusive a do professor, que o protagonista sempre desdenhou. Nesse prisma, "a Felicidade das pequenas coisas" é uma espécie de conto budista, onde a vida basta-se na interrelação humana e com a natureza. É sabido o quanto os budistas tratam os animais sem hierarquia com os humanos. A fotografia de "A Felicidade das pequenas coisas" está o tempo todo a nos situar sobre os objetos, os figurinos típicos, mas sobretudo sobre a paisagem eivada de paz e belezas naturais que nos convidam a conhecer melhor esse universo. Talvez tenha faltado ao diretor alongar mais o filme, para que a temporalidade de Lunana pudesse sobressair mais. Me ficou a sensação de que o tempo em Lunana é mais ralentado do que o mostrado no filme. A paisagem aponta para isso, mas não bastou, porque o tempo é uma unidade da vivência, do cotidiano.    

A partir disso da dinâmica de Lunana, muitos elementos simbólicos vão sendo inseridos aos poucos na história, como a relação da comunidade com os Iaques, um tipo de bovino do Himalaia, considerado sagrado entre eles. O mais interessante é quando a população de Lunana usa o estrume seco do Iaque no lugar da lenha para acender o fogo. Não basta ser sustentável, é necessário ser preservacionista e quem vive das benesses da natureza sabe a importância desses hábitos, faz lembrar da relação dos indígenas brasileiros que tratam a fauna e flora da mesma maneira. Um bom exemplo está na personagem Saldon, que oferece ao lugar o seu canto. Nota-se que ela oferece canções ao lugar, a todos os seres vivos, não só para pessoas. É a maneira dela retribuir ao mundo tudo o que ele lhe dá, uma retribuição carregada de amor, carinho e respeito que diz muito sobre o que o filme quer dizer. Há o coletivo e ele é composto por almas interiorizadas que percebem o valor de cada ação praticada, uma forma de elevação cotidiana. Cada um possui um brilho próprio e esse brilho retroalimenta o coletivo. O jovem professor Ugyen vai a cada momento percebendo isso, aprendendo isso.


"A Felicidade das pequenas coisas" vai fundo nesse mundo que deixamos para trás enquanto humanidade, de uma vida simples e em harmonia com a natureza, com os valores de preservação e interação, não de destruição como nos acostumamos hoje em dia nos centros urbanos. O conceito de comunidade faz com que o coletivo busque a colaboração e a união como princípios constitutivos da sociedade. Quando o protagonista chega em Lunana, o que vemos é o som do lugarejo invadir a tela, nos mergulhando na simplicidade e na paz de espírito. A música pop que antes predominava vai sendo posta de lado para ouvirmos o entoar das belas músicas locais. A cada cena, vemos o jovem professor aprendendo mais do que ensinando, o que muito diz sobre um mundo contemporâneo altamente desenvolvido tecnologicamente, mas pouquíssimo conectado com valores essenciais e comunitários. O baú que lhe fora apresentado como do antigo professor está mais cheio quando Ugyen volta para a sua cidade de origem. Mas Lunana também representa uma origem, a da humanidade quando esta ainda não sonhava tanto em progredir economicamente.   

O diretor Pawo Choyning Dorji está a nos dizer algo, está a nos indagar sobre caminhos, talvez os 8 dias para chegar em Lunana sejam bem menos distantes do que o buraco desenvolvimentista que nos metemos. O filme não fala apenas dessas distâncias geográficas, mas de outras. Não estaria a nos interrogar sobre os caminhos humanitários que construímos, de um isolamento bem mais sério do que o geográfico? Quando chega o inverno e Ugyen precisa voltar à Capital, ele realiza o sonho de ir viver na Austrália, mas chegando lá as coisas pequenas parecem então se agigantar. Ele toca em um pub em Sydney, mas ninguém efetivamente o escuta. A fama e o bom salário bastam? A resposta dele frente a isso é clara. É hora de acolher quem o acolheu e o valorizou como pessoa. O papel que tira do bolso encurta a distância geográfica e o calor emitido dessa cena chega ao espectador e aquece a alma. O mundo pode ser outro sim, e talvez ele exista a meros oito dias de nós.



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