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LICORICE PIZZA (2021) Direção Paul Thomas Anderson (PTA)


O real e o onírico em PTA

"O mundo não gira em torno de Gary Valentine!" Personagem Alana para Gary

Texto de Marco Fialho 

Podemos iniciar dizendo que "Licorice Pizza" é mais um filme com a assinatura PTA. Isso quer dizer que o enredo transcorre nos anos 1970 e que revisitar o passado é uma de suas obsessões? Também por isso, mas não só. Tudo está contaminado pela marca autoral, e a certeza disso se ratifica a cada nova sequência, pelo enredo, pelas músicas, pela maneira de contar a história, de como a câmera se movimenta, de como os atores se movimentam e comportam em cena, enfim, por ser uma mise-en-scène típica de PTA.

"Licorice Pizza" sugestiona desde a primeira sequência uma atmosfera onírica, embalada pela canção "July tree" cantada belamente por Nina Simone. Cena e música falam do mesmo tema, o do cintilar inesperado do amor. Essa sensação do onírico permeia todo o filme. Gary Valentine (Cooper Hoffman, filho do grande Philip Seymour Hoffman) tem 15 anos, quer ser ator e faz um bico na agência publicitária de sua mãe. A inerente cara de pau faz dele um personagem repleto de possibilidades. Alana (Alana Haim, cantora e instrumentista da banda de pop rock "Haim") é uma menina de 25 anos, com pouca vivência e que trabalha numa empresa de fotografias. A câmera está sempre a serviço deles, os contemplando, como se os admirasse afetuosamente. 


PTA realiza um filme para se deleitar com as vicissitudes juvenis, ele entrega a elas o merecido protagonismo, de certo um encantamento despretensioso, uma espécie de declaração de amor àquela fase lúdica de nossa vida. E essa aventura deliciosa é a que acompanhamos por puro ato de prazer e amor contagiante, e essa é uma das maravilhas de "Licorice Pizza", compartilhar com o filme o prazer sensorial que ele irradia cena a cena. A história de amor de PTA não poderia ser apenas mais uma e felizmente não é, nada ali é convencional, tudo tem um toque diferente, misterioso, à la PTA. Gary não se relaciona com uma mulher madura (vários filmes já fizeram isso), nem com uma adolescente com idade próxima, sua affair é uma mulher de 25 anos, o que foge inteiramente de qualquer padrão de relacionamento abordado no cinema. O filme é sobre Gary tentando seduzir Alana? Ou poderíamos dizer que é sobre PTA flertando com os espectadores? Ou ele estaria encantado com os personagens? Essa ambiguidade ronda "Licorice Pizza" em todas as cenas. Os olhares entre o casal adolescente dizem mais sobre uma sedução a nós espectadores do que a uma entre eles próprios. Há um desejo irrefreado, constante de PTA, de nos fazer apegar a tudo que passa pela tela, e a maneira de como ele insere a trilha musical no filme confirma essa predisposição ininterrupta em nos seduzir cinematograficamente.

Já citei uma faixa musical da trilha de "Licorice Pizza", mas precisamos dizer que as músicas são de certa maneira a maior estrela dessa obra. O próprio título já é uma referência a uma cadeia de lojas de vinil dos anos 1970 e 1980 nos Estados Unidos. PTA amalgama música e vida exemplarmente, na concepção dele uma não pode ser desvinculada da outra. Há uma intenção deliberada de falar da época (não casualmente PTA salienta fatos, como um discurso de Nixon na TV) por meio das canções. The Doors, David Bowie, Donovan, James Gang, Gordon Lightfoot, Bing Crosby, Suzi Quatro and Chris Norman, Seals and Crofts, Sonny e Cher, Paul McCartney & Wings, Chuck Berry, Taj Mahal estão presentes como uma espécie de moldura histórica para nos arremessar emocionalmente aos anos 1970. Ao todo, 34 músicas foram inseridas, o que mostra o quão importante elas são para o conjunto do filme. 


É na viagem a uma época, nos detalhes mais inusitados dela, que PTA finca um diferencial em sua obra. Programas de TV, publicidades apelativas, feiras de todo o tipo, as campanhas eleitorais, o mundo suntuoso e bizarro dos milionários excêntricos, os personagens transloucados que são a vitrine de uma época, que brilham para se apagarem logo a seguir, seguindo a lógica fluida do capitalismo feroz norte-americano, com suas camas d'água e outros artigos de ocasião. No meio de toda essa parafernália que são os States, reafirma-se a loucura do "American Way", uma terra para se cumprir os sonhos individuais e aberta a todos que queiram levar ao limite o trabalho, o empreendedorismo, a ambição humana e a prosperidade, é de surpreender que nasça nesse contexto uma história de amor. Essa é a mágica que PTA pretende brincar e manipular. Em um mundo onde tudo é falso, o amor é verdadeiro. Será mesmo? O país onde o dinheiro circula fácil, entra e sai fácil do seu bolso. É lindo ver como o país cena a cena invade não só o filme mas também a história de amor adolescente, basta lembrar a sequência em que Gary é aleatoriamente preso enquanto trabalhava vendendo colchões d'água em uma feira. 

Estruturalmente, "Licorice Pizza" se organiza não em um conceito de continuidade óbvia, mas em blocos consistentes, cada um muito bem alinhavado com o seguinte em uma espécie de permuta criativa, pensado numa ordem que cria um desenho perfeito, uma crônica amalucada de um país convulsivo, e sem freios para a falta de noção. Por isso, o ritmo do filme é ditado por uma ideia de movimento e velocidade. PTA filmou vários planos com a dupla protagonista correndo e cenas em carros em movimento, o que torna tudo um universo muito sedutor. Sim, o filme é sobre esse país doido onde tudo pode acontecer, onde um adolescente pode se tornar um milionário pela perspicácia. Algo interessantíssimo em "Licorice Pizza" é que a trilha musical já parece ter sido composta premeditadamente para alimentar esses sonhos juvenis de Gary e Alana. Quem desmentiria que "Peace frog", do "The Doors" não foi composta especialmente para aquela sequências da super venda do colchão d'água? E "Let me roll it" de Paul McCartney para o auge da relação Gary/Alana com eles delirando no colchão d'água? E a cena que vem logo a seguir, com a notícia da crise do petróleo com a música "Live in mars?", de David Bowie, que atesta a loucura desse mundo? É PTA transformando tudo que está no universo filme como dele. Ele cria as cenas como homenagem às músicas que tanto ama. É o cinema e o poder do cineasta de criar um mundo todinho seu. Isso é resultado de muito trabalho com certeza, embora aliada a uma demonstração de grande talento para o ofício cinematográfico, o que sabemos que PTA tem de sobra, vide a bela filmografia já construída e tão comentada pelo público e crítica.


Como eu afirmei lá nas primeiras linhas "Licorice Pizza" sugere constantemente o onírico, por isso queria transitar um pouco pelas suas imagens para dissecar um pouco essa ideia. Primeiro começando pela fotografia e como ela parece esconder algo a todo o tempo, como se não se preocupasse a descortinar algo, mas ao contrário, apelando mais para uma luz difusa e enevoada. Essa falta de clareza somada a ideia de velocidade conferem um quê de vertigem ao filme. Os diversos espaços internos como bares, escritórios, casas e a predominância de cenas noturnas, colaboram para que tenhamos quase sempre uma ambiência sensual e multicolorida. Alana seduz a todos, mas a princípio sem a finalidade do ato sexual em si. "Licorice Pizza" apesar de não ter nenhuma cena de sexo, PTA consegue sensualizar pequenos relances das cenas, tanto com a movimentação da câmera quanto com os olhares provocativos dos atores ou closes em objetos. Muitas das vezes, o sexo está na forma do filme e não no conteúdo. A sensualidade em "Licorice Pizza" é antes de tudo cinematográfica, ou se quiser, onírica. Uma ideia de que o cinema é sonho. O onírico em "Licorice Pizza" não vem de um sonho ou devaneio dos personagens, mas da própria narrativa criada pelo diretor. As cenas mais sensuais são as oníricas ou estão mais fronteiriças a elas. PTA não abre mão de fazer um filme adolescente, mesmo não sendo esse um típico filme de amor adolescente. Os elementos estão ali: o adolescente apaixonado, a menina titubeante, os sonhos, o movimento, a música, a família tradicional e outros elementos que podem ser aqui ainda lembrados. Todavia, antes de tudo ele é um filme de PTA.

O mais interessante é o quanto PTA consegue amarrar em um único filme, que na superfície parece ser banal, um Estados Unidos contraditório, com seus desejos de enriquecimento, desapontamentos, sonhos visionários por um país melhor, os altos e baixos da economia, as intempéries comportamentais e tantas outras coisas que compõe uma radiografia que também é geracional. Lidar com o diferente e amar é um dos grandes desafios da humanidade e PTA participa disso de uma maneira única, sensual, pessoal e lírica. Ou seria onírica?          



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