Pular para o conteúdo principal

VITALINA VARELA (2019) Direção Pedro Costa


As sombras da escuridão 

Texto de Marco Fialho 

"Vitalina Varela" é uma obra rara, com ela, o cineasta português Pedro Costa se insere em um seleto grupo de diretores que dialogam idiossincraticamente com o cinema. Em um Festival do Rio passado, já havia me defrontado com "Cavalo Dinheiro" (2014), seu trabalho anterior, que me assombrou sobremaneira pelo vigoroso traço autoral do diretor. Inclusive Pedro Costa conhece Vitalina Varela quando buscava locações para esta obra anterior e o encanto foi tanto que não hesitou em incluí-la no elenco para depois aprofundar essa relação em um filme inteiramente dedicado (devotado?) a ela.   

Apesar de "Cavalo Dinheiro" ser um filme potente, em "Vitalina Varela" observa-se um apuro de método e um maior rigor nos enquadramentos e fotografia. A manutenção da parceria com o fotógrafo Leonardo Simões muito colabora para o impressionante resultado estético com o uso do conceito pictórico do chiaroscuro, o que demonstra a aproximação de Pedro Costa com as artes visuais, não só pelo uso fotográfico, mas também pela ideia performática com que dirige os atores em cena, subtraindo deles a dramaticidade e resgatando neles a presença do corpo periférico e dos rostos expressivos. O chiaroscuro foi uma técnica de grande influência na pintura renascentista e do barroco ao consagrar o contraste radical entre luz e sombra, e entre as dimensionalidades no quadro, que jamais pode ser definida como uma característica uniforme. Cada pintor a desenvolveu a seu modo, o que levou a técnica a produzir resultados imagéticos e de sentidos diferentes. Leonardo da Vinci desenvolveu o sfumato, onde a ênfase recaía mais na diferença focal entre o primeiro e o segundo plano, portanto trabalhando menos com os contrastes entre as cores. Mas creio que os artistas que mais influenciaram Pedro Costa e o fotógrafo Leonardo Simões a desenvolver o conceito pictórico de "Vitalina Varela" foram as obras de Caravaggio e Rembrandt (ver pinturas abaixo). Neles a projeção de luz realçavam o primeiro plano (alguns objetos e pessoas) e jogavam o fundo ao breu, os deixando invisíveis, exatamente como Pedro Costa faz em seu filme, praticamente anulando parte da tela, impondo a ela uma escuridão, dando destaque para o que está iluminado, mesmo que a incidência de luz seja a mínima possível.  

              

                                                                      

Falando assim, pode-se induzir a uma ideia equivocada de "Vitalina Varela" como uma obra que apenas se sustenta por seu rigor imagético e pictórico, e que nada mais ela entregaria. Evidente que não é assim, já que há sustanças em profusão em outras áreas que fazem este filme figurar entre os mais expressivos dos últimos anos. O rigor também encontra-se em outros lugares, como por exemplo nos artifícios cinematográficos largamente utilizados por Pedro Costa: como os enquadramentos fixos precisos (verdadeiros quadros, basta lembrar da cena de abertura); a montagem milimétrica que esconde e revela na medida certa a história, onde paralelamente se desconstrói e se constrói o tempo diegético; o texto enxuto, sem arestas dos diálogos e da voz de Vitalina pensando sobre a sua vida; a interpretação impactante que consegue a junção incomum da economia gestual com a expressão possante dos rostos; a ausência da música como veículo narrativo; e o uso da cor como elemento de composição com o fundo escuro e a pele preta dos personagens. Cito apenas alguns exemplos e poderia citar ainda outros para embasar o que aqui digo sobre "Vitalina Varela".

Quero voltar à fotografia do filme, pois a ela não cabe apenas um comentário ou uma identificação histórica da técnica chiaroscuro. Pedro Costa conjuga com maestria o conceito fotográfico à questão temática dos emigrantes da ex-colônia portuguesa de Cabo Verde ao criar um universo de sombras em meio a vida que flui na escuridão, que se reinventam em plena diáspora. Essa é a imagem de "Vitalina Varela", onde o conceito de chiaroscuro se funde à própria cor da pele dos personagens ressaltando uma beleza deveras melancólica. Cada plano fixo se estabelece como um quadro onde personagens vivem à despeito de governos e vias institucionais. Os túneis, as casas escuras, a ideia de subterrâneo sempre prevalecendo sobre a de superfície e luz. 


Não casualmente, a luz do dia raramente dá as caras e quando ela aparece a imagem relaciona-se mais a terra de origem (Cabo Verde), onde os sonhos de Vitalina Varela de uma vida frugal estão plantados. A luz em Portugal mostra inversamente a destruição do espaço, o caos do que ainda precisa ser reconstruído (ou até mesmo construído). Enquanto em Cabo Verde ouvimos sobre a casa de dez cômodos, em Portugal vemos a vida sub-humana das casas depauperadas da favela. O marido de Vitalina troca a segurança da vida a dois ainda em construção, por uma vida regada ao imprevisível e ao improviso, de horários incertos, de bebidas e mulheres sem compromisso com a estabilidade. Mais do que falas, Pedro Costa recria esse mundo por meio de imagens sombrias, o chiaroscuro enfatiza e dialoga com rostos e corpos em detrimento ao espaço que é apagado por uma sombra que se configura como uma moldura a esconder a triste realidade. A expressividade dos rostos fecha a ideia da tragédia, de sofrimento, de vida desperdiçada pela ilusão de que em outro país mais desenvolvido tudo seria diferente.

Habitualmente vemos sempre Portugal por um viés solar e de uma beleza nostálgica, com um passado regido pela opulência que mesmo perdida no presente, persiste ainda no ideal de que lá pode-se recomeçar uma nova vida. "Vitalina Varela" mostra que para os corpos pretos e pobres nem sempre é assim. Deve-se se salientar que os brancos são invisíveis em "Vitalina Varela", pois no filme eles não estão presentes no mundo subterrâneo relegado aos pretos em sua maioria imigrantes. Pedro Costa trabalha pouco com o aspecto simbólico em 'Vitalina Varela", pois prefere agregar aos personagens imagens cruas e duras, mas há um simbolismo que deve ser mencionado aqui: a dos pés de Vitalina. Lembremos que ela assim desce do avião quando chega em Portugal, e desse mesmo modo sai da casa do marido ao final do filme. "Vitalina Varela" representa a força dessa mulher preta contemporânea, que durante a vida se dedicou a construir e esperar, sem nunca perder a esperança, apesar do mundo se apresentar historicamente como uma eterna sombra. Uma obra-prima para ficar na história e na memória.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...