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ATAQUE DOS CÃES (2021) Direção de Jane Campion


Sinopse:

Phil (Benedict Cumberbatch), um fazendeiro durão trava uma guerra de ameaças contra a nova esposa (Kirsten Dunst) do irmão (Jesse Plemons) e seu filho adolescente (Kodi Smit-McPhee) - até que antigos segredos vêm à tona. 

A sutileza como estratégia para revelar o cão

Texto de Marco Fialho

Em 1993, a diretora neozelandesa Jane Campion ganhou o mundo do cinema com o belíssimo "O piano". De desconhecida tornou-se uma referência como cineasta. O reconhecimento por "O piano" possibilitou a chegada de sua obra anterior, o potente "Um anjo em minha mesa" (1990), uma obra fortíssima que ratificou a importância de Campion como artista. O trabalho mais recente dela, "Ataque dos Cães" traz o selo da poderosa plataforma Netflix, onde foi produzido e está sendo distribuído, e com uma repercussão surpreendente, obtendo um sucesso arrebatador. O filme foi adaptado por Campion a partir do livro homônimo de Thomas Savage. De certa maneira, "Ataque dos Cães" resgata um cinema de Campion que estava adormecido desde "O piano" em que os diálogos importam menos do que outras estratégias cênicas e narrativas mais introspectivas ganham espaço e magnitude. 

"Ataque dos Cães" pode ser apontado tranquilamente em aulas sobre direção cinematográfica como um belo exemplo de sucesso, pois Campion abusa de sutilezas no exercício do ofício de diretora. São olhares trocados entre personagens, posicionamentos e movimentos pontuais de câmera, uma fotografia bem construída e uma música que beira o minimalismo que conferem ao filme um peso dramatúrgico que muitos almejam atingir mas poucos verdadeiramente alcançam. Em "Ataque dos Cães" muitas cenas precisam ser pensadas, articuladas e assimiladas em relação a outras. E o não dito e o não mostrado também merecem atenção, pois são eles que revelam fatos passados surpreendentes, antes adormecidos nas sombras. A obra afirma o imenso talento de Campion para a direção de atores/atrizes.


Cada personagem carrega mistérios pregressos muito perigosos de serem descortinados no presente. Lembrando que a história transcorre no ano de 1925, época em que a sociedade norte-americana esforçava-se para modernizar-se nos costumes, em especial da herança patriarcal vinda dos tempos da expansão para o Oeste. Os irmãos George (Jesse Plemons) e Phil (Benedict Cumberbatch) expressam em posturas e ideias a cisão existente entre o passado e o futuro do país. George busca o requinte, enquanto Phil luta pela manutenção de velhos hábitos. Outro conflito latente em "Ataque dos Cães" é o de modelo de masculinidade. Phil representa o macho violento que resolve tudo pela força, aliás como as gerações anteriores sempre fizeram; já George e Peter (Kodi Smit-McPhee) buscam caminhos mais conciliadores nas relações familiares e sociais, enfrentando a fúria canina de Phil.

Jane Campion trabalha articulando diversas camadas no filme. Há uma que é esteticamente estruturante, que a diretora costura em paralelo à narrativa, no plano da imagem. Campion oferece planos enquadrados por janelas (inclusive no início) e nos incita à observação e ao voyeurismo, sugerindo que essa história possui subterrâneos, coisas convenientemente escondidas. As cenas internas são escuras, pela imagem que vemos, não existe transparência na vida dos personagens. A casa antiquada da família Burbank reafirma algo lúgubre, onde predominam o escuro da madeira, salientando que o sinistro está a rondar aquele espaço. Será que todos estão aprisionados por um passado castrador ou suspeito? O que teriam a esconder? O aspecto imagético precisa ser fortemente contemplado em "Ataque dos Cães", ele está não só para informar, mas também para interrogar a respeito das sombras de cada um. A música também ratifica um quê de lúdico ao salientar discretamente o misterioso. 

A palavra segredo creio ser a melhor para definir "Ataque dos Cães", e Campion impregna tanto a história quanto a narrativa com ele. Se pouco sabemos da história no todo, a diretora construiu uma narrativa à altura. Se os personagens escondem o jogo, Campion faz o mesmo com o aparato cinematográfico. Tanto é que são os olhares e os silêncios os elementos que mais revelam o filme, por isso comecei o texto retomando "O piano", obra inteiramente amalgamada pelos olhares e silêncios. Se lá tínhamos uma personagem que era surda e muda, aqui não a temos, o que muito diz sobre a estratégia que Campion propõe para "Ataque dos Cães". Eles estão na base construtiva do filme da primeira até a última cena, quando tudo se reduz ao silêncio e ao olhar de Peter, sem Campion esquecer dos movimentos quase sempre suaves e discretos da câmera, prontas a mostrar apenas o essencial de cada cena, fazendo aproximações significativas e muitas vezes reveladoras. Esse voyerismo que Campion impõe aos espectadores são fundamentais, espiamos confidências quase sempre descortinadas pela imagem, seja com uma revistinha, seja um lenço aparentemente despretensioso, ou mais ainda, por uma sela zelosamente cuidada como uma relíquia que transpira saudade e erotismo.   

Vale observar como Campion planta em quase todas as sequências referências e nuances eróticas, uma espécie de camada sutil a permear a narrativa. Primeiro revela o mais óbvio, o comportamento afeminado de Peter, que inicialmente contrasta com a masculinidade tóxica e violenta de Phil. A sequência das rosas de papel cuidadosamente modeladas por Peter destoa da reação nociva de Phil, que não só aproveita para debochar e desqualificar Peter, como acentua o conflito, ao incendiar a rosa para acender seu cigarro de palha. Mas Campion não deixa barato ao ofertar um close no dedo de Phil sendo eroticamente introduzido no centro da rosa. São sutilezas cinematográficas que abrem valiosas interrogações sobre cada um dos personagens. O elemento tóxico de Phil salta aos olhos a princípio, mas Campion vai vagorosamente desfiando as situações como se fossem uma carne cozida e macia, até que os processos contraditórios falem mais do que as aparências iniciais. A adoração da masculinidade é o que mais aproxima Phil do universo homoerótico, ele está tão envolvido e enclausurado no masculino que só consegue ver potência ali, inclusive a sexual.


Em um mundo burguês que a aparência começa a ter uma importância, e que os cowboys estão em franco declínio, o faroeste soa em "Ataque dos Cães" como uma rusticidade vencida. A fixação e fascinação de Phil pelos valores daquela sociedade onde os mais fortes sempre se impuseram pela violência adquire no filme uma faceta nostálgica. Não à toa Phil não cansa de enfileirar e positivar aspectos de um passado que em 1925 estava com a morte já prescrita. Mas Campion sabe o quanto o passado, por mais defasado que seja, deixa marcas ainda no hoje e o machismo estrutural não nos deixa esquecer nem desmentir essa ideia. O passado de Phil tem Bronco, um clássico cowboy que o ensinou tudo sobre o ofício de fazendeiro. Mas pelo jeito, não só.  Essa idolatria é por demais reveladora e está nos mínimos detalhes, como o contemplar de uma cadeia de montanhas ("Bronco me ensinou a ver o mundo com um outro olhar") ou na devoção a uma sela. A relação com Peter torna-se para Phil um espelho da sua com Bronco, o que será fatal porque o tempo agora são outros e Campion demonstra claramente isso.

A relação entre Phil e Peter (que é chamado pejorativamente de "Florzinha" pelo primeiro) é a mais rica, a que mais manifesta as ambiguidades da personalidade tóxica de Phil. Mas seria Peter mesmo uma candura de pessoa? Há cenas que deixam isso em suspenso, como na que ele mata o coelho para ver o seu organismo por puro capricho, ou no seu traiçoeiro plano arquitetado para matar Phil. Ambos são personagens ricos, imersos em contradições, dúbios e inconstantes. Entretanto, o mais interessante entre eles está na troca de olhares. Campion sabe como explorar com habilidade esse artifício, porque por meio dele alcançamos algo, porém sem jamais podermos afirmar muita coisa. O olhar instaura a dúvida, a desconfiança, ele pode até mesmo contradizer um sorriso e isso o faz algo eivado de mistérios. Se as mãos estão a trançar as cordas, os olhares estão em outro registro, estão a desafiar ou seduzir, a dizer o que as palavras não consentem dizer. Mas porque Phil resolve inesperadamente tratar melhor Peter? Qual a virada dessa chave? Será que foi a descoberta por Peter tanto da coleção de revistas de fisiculturismo quanto do apego sexual de Phil pelo mestre Bronco? São camadas que Campion oferece e que levam "Ataque dos Cães" para um outro patamar.                



Algumas questões do filme estão estritamente ligadas com fatores exteriores à filmagem em si de "Ataque dos Cães", mas que repercutiram diretamente na montagem final. Devido ao tamanho do filme, diversas partes fundamentais do livro foram subtraídas, como a do primeiro marido de Rose. Campion contornou tudo com muita sutileza e conseguiu salvar tudo se utilizando dos atributos cinematográficos dos quais domina como poucos. Essa ausência de John foi usada por Campion para sublinhar o mistério do filme, pois esse passado nos chega muito episodicamente, jamais na inteireza. Por isso que é importante agora falar de Rose, a personagem que mais perdeu com as subtrações do roteiro. Ela é uma personagem misteriosa, ou seria melhor dizer a mais frágil do filme? Ao contrário de Phil e Peter, essa única personagem feminina de peso no elenco é a mais inescrutável. No início, tudo leva a crer que teria uma força dramática mais constante, porém o que sucede é que a mesma vai se afundando no alcoolismo e narrativamente na invisibilidade. A supressão do personagem John dificultou um melhor entendimento de Rose, que por em certos momentos flutua na história. Rose casa com George apenas pela posição social ou por proteção? Por que ela abriria mão de um negócio próprio já estabelecido para ser uma dona de casa? Por que Rose se entrega ao alcoolismo? Apenas por frustrar os anseios de requinte do marido? A relação dela com Phil também se problematiza, já que ele sempre tenta fragilizá-la, como na cena em que sola no banjo a música que ela sofridamente tentava arrancar quase a fórceps no piano. Enfim, fica a sensação de que Rose poderia render mais, especialmente porque Kisrten Dunst entrega muito nas cenas em que é exigida.  

Se Campion faz mais uso de internas do que externas, isso não pode ser visto por um viés de hierarquia. As externas são muito bem pensadas no filme, e vale lembrar que a paisagem está encruada na cultura americana e é difícil pensar nessa perspectiva e não se recordar do mestre John Ford. E ao que tudo indica, Campion pensou bastante nele também. A reincidência dos planos gerais e das janelas a formar um novo plano dentro do plano remete muito a Ford, em especial a "Rastros de ódio" (1956). Apesar da semelhanças gráficas, deve-se destacar as distinções de intenção. Em Ford, a janela está a comunicar ao público o espetáculo, a recriação de um mundo do passado, uma janela temporal. Em Campion, a intenção está mais relacionada ao personagem, mostrar que há algo a ser descoberto sobre ele, o que está presente também nos contrastes entre exterior/luz e interior/sombras. Logo no início, a câmera captura e segue Phil que está a andar longe, indecifrável. Sem corte, a câmera passeia por três janelas e o intervalo entre elas é marcado por flashes de escuridão. São planos além de belos, sugestivos para aguçar nossa curiosidade sobre o personagem que ainda iremos conhecer no decorrer do filme.


Tendo em vista o retrospecto machista da academia de Hollywood, no que tange a indicação de mulheres como diretoras, com "Ataque dos Cães" Jane Campion se consolida como uma das mais significativas cineastas da história do cinema, ao demonstrar um domínio pleno dos meios cinematográficos e narrativos. Desde sempre o cinema norte-americano se utilizou de profissionais estrangeiros para poder seguir adiante. Jane Campion traz contribuições valorosas para este cinema que domina o mercado internacional, mas que muitas vezes necessitou de cineastas que agregaram sutilezas em meio a uma indústria tão acostumada a efeitos especiais, explosões, correrias e parafernálias tecnológicas de última geração, mas sempre demonstrou uma grande dificuldade de inserir elementos criativos na narrativa. Elementos esses que nos lembram que estamos assistindo a uma obra que pulsa vida ao salientar suas contradições, ao invés das frágeis pirotecnias descartáveis infelizmente tão comuns no cinema de hoje. Para revelar o cão, presente no título do filme, Campion preferiu unir a sutiliza no uso dos aparatos cinematográficos com a inteligência do espectador. Uma aposta e tanto dessa talentosa diretora.                  

Comentários

  1. Brilhante análise do filme tenso e intrigante que nos oferta Jane Campion. Vou rever.

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    1. Muito obrigado Nícia por ler e compartilhar a sua impressão sobre o filme e o texto! Gosto de ouvir sempre os seus comentários!

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