O ciclo poético dos desencontros da vida contemporânea
Texto de Marco Fialho
O ritmo de criação e produção do cineasta sul-coreano Hong Sang-Soo impressiona, assim como a coerência entre elas, sem falar que a quantidade não abala a qualidade das obras realizadas. Outra questão a relevar é o traço autoral, a facilidade que temos de identificar um filme do diretor. Normalmente, as obras partem de abordagens do cotidiano de personagens, muitos deles, vindos do próprio cinema, como diretores, atores e atrizes, o que suscita uma reflexão metalinguística fascinante e densa, apesar de chegar sempre com a devida leveza no espectador. "Encontros", seu trabalho mais recente a ser exibido comercialmente no Brasil, não é diferente, tudo soa tão íntimo e logo nos apegamos em alguns personagens. Entretanto, não se deve esperar de um enredo de Sang-Soo algo impactante nem tampouco com uma ação desenfreada. No seu mundo, tudo transcorre aparentemente tão sem graça quanto nos apresenta à vida. E esse é o charme dos filmes que realiza.
Em pouco mais de uma hora de projeção, "Encontros" reafirma o estilo narrativo de Sang-Soo em tratar de temas que envolvem desencontros humanos e familiares. Apesar do título, a palavra que melhor define a série de encontros que acontecem na trama do filme é justamente desencontro, seu antônimo. Novamente o diretor explora tanto os planos-sequências quanto as aproximações invasivas realizadas pelas lentes (zoom) que nos colocam dentro das cenas e conversas entre os personagens. Sang-Soo divide o filme em três atos ao mostrar a peregrinação do jovem Young-ho (o ótimo Shin Seok-Ho) em busca da mãe, do pai e da namorada. Como de hábito, Sang-Soo passeia com a câmera pelos seus personagens, como se quisesse flertar com seus gestos e olhares, e assim nos seduzindo e tornando cúmplices deles.
Do ponto de vista da organização do tempo, embora Sang-Soo delimite o filme em três atos, eles não estão necessariamente em sequência. Há mais uma desorientação desse tempo do que uma organização. Na verdade, os atos parecem ter organizações temporais próprias. Nota-se que tanto no ato um quanto no três, o ator está presente como impedimento para que Young-ho realmente encontre seus pais. Enquanto no primeiro ato o pai está atendendo em consulta, no terceiro, o ator está almoçando com a mãe e a relação de Young-ho se dá muito mais com o ator do que com a própria mãe, enquanto no primeiro Young-ho se relaciona muito mais com a secretária que é a atual namorada do pai, que há muito tempo não o vê e fica dizendo o quanto ele cresceu e ficou bonito. A fluidez das relações dão o tom em "Encontros", assim como os afetos difusos que o filme nos proporciona. A namorada do pai fica a perguntar se Young-ho ainda a amava, porque ele dizia muito isso quando era criança. No todo, os personagens estão a buscar um afeto em um mundo onde as relações escoam feito água pelo ralo. E é disso que o filme mais trata, dessa superficialidade e a da distância típicas que tão bem distinguem o mundo contemporâneo.
A cada cena, Sang-Soo inunda a tela com um humor sutil e irresistível, nada é escancarado, mas as situações criadas esbarram em uma ironia fina, que de certa forma contradizem o próprio humor inicialmente anunciado. Há a construção de uma mise-en-scène que induz à trivialidade, um tipo de realismo que explora as incongruências da vida vindas do próprio ato de encontrar, os dissabores corriqueiros e inesperados nos quais somos acometidos diariamente em nossas vidas. Em "Encontros" nos deparamos com situações esdrúxulas, como a do filho que vai visitar o pai médico e não consegue, pois ele está atendendo um famoso ator, por sinal, o mesmo que em outro ato aparece como amante da mãe. Sang-Soo trabalha muito bem com as carências de uma geração jovem que não teve o carinho dos pais, mergulhados nas suas ambições capitalistas.
Apesar das relações em "Encontros" se apresentarem todas desencontradas, há um quê de cíclico na estrutura do filme que o transforma em um interessante atrativo. De certa forma, a presença do filho e do ator tanto no primeiro quanto no último ato estabelece uma unidade ao filme e justifica o desfecho dado de um porvir claramente indeterminado. Há uma busca por encontros realizada pelo jovem Young-ho, porém algo sempre o arremessa em uma frustração e reafirma o caos de sua vida sem rumo. O segundo ato causa uma desorientação da história inicial ao deslocar à ação da Coreia para a Alemanha, com personagens que até então não haviam aparecido na trama. Assim, tempo e espaço em Sang-Soo servem para o mesmo propósito, o da desorientação do espectador, que fica a tentar se orientar no enredo. É nesse ato segundo que o diretor reafirma o quanto a namorada de Young-ho vive um problema semelhante de relação com a mãe, ditado por um profundo distanciamento e de estranhamento.
O diretor por meio de um breve recorte da vida dos personagens vai construindo um retrato do mundo contemporâneo, das distâncias físicas, geográficas e afetivas entre pais, filhos, namorados e amantes. Mais uma vez, um dos momentos das intensos do filme se passa em uma mesa de bar, onde a bebida torna-se o veículo para que os personagens possam se mostrar verdadeiramente, sem filtros ou censura. O jovem, a mãe, um amigo e o ator, conversam sobre a vida e a natureza de ser artista. O devaneio faz parte da essência do cinema de Sang-Soo, pois para ele esse simples ato humano se vislumbra como potente, capaz de revelar a verdade de cada um dos personagens. Esse "Encontros" é um dos filmes mais contemplativos do diretor, onde somos convidados a observar tantos os personagens quanto as paisagens nos quais estão inseridos, sendo a praia um dos locais mais simbólicos do filme, como um desejo de liberdade e amplitude dos gestos dos personagens, sempre muito presos pelo peso de uma educação formal. Sang-Soo edifica os personagens de uma maneira muito sutil e encantadora. O ator, por exemplo, parece estar a atuar constantemente, o que nos leva a perguntar se esse fato o coloca em uma situação diferenciada em relação aos outros personagens. Ele levaria vantagem ao ter estudado formas de representação do mundo? Ou até usaria ações do cotidiano como um experimento profissional?
Muitos podem ver "Encontros" como uma obra sem o impacto de outras recentes do diretor, talvez até a mais econômica no aspecto de ousadia narrativa, embora ela preserve o estilo inconfundível de Sang-Soo, baseado em conversas, às vezes aparentemente prolixas, e em uma câmera invasiva que nos arremessa involuntariamente para dentro do filme. Há um esforço permanente de Sang-Soo de nos aproximar dos seus personagens e de fazer que eles nos sirvam de espelho ao discutir temas banais que poderiam ser (ou seria melhor dizer que são?) também nossos. Ou ele o faz somente como um instrumento de manipulação, para nos levar para onde bem entender seu filme? Seria uma maneira astuta de nos envolver em suas discussões sobre a vida?
Realmente, cena a cena Sang-Soo parece nos conclamar à contemplação da vida, mas não só. Ele também incita que conversemos sobre ela, que façamos das conversas a nossa maior protagonista, mesmo que delas resultem mais desencontros do que encontros. O álcool, contraditoriamente, atua nas conversas como catalisador de discordâncias, já que a sinceridade que ele propicia, acende a chama de infinitas discussões. Por isso, o cinema de encontros de Sang-Soo se vira rápida, e até astutamente, em um cinema dos desencontros. E a nossa vida seria assim tão diferente dessa proposta de ficção desse diretor sul-coreano? Esse é o maior encanto que ele nos oferta com o seu cativante cinema.
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