A memória do Ocidente posto à prova
Texto de Marco Fialho
A cada novo trabalho Apichatpong Weerasethakul reafirma seu nome como um dos grandes cineastas em atividade no mundo. "Memória" é mais uma obra que vem adensar uma filmografias das mais coerentes e consistentes desse já cultuado diretor tailandês, sendo que "Memória" assinala o primeiro longa dele filmado no exterior e com a presença luxuosa da excepcional e versátil atriz britânica Tilda Swinton.
A trajetória de Jéssica se encerra com o encontro com esse Senhor na floresta, mas até chegar nele existe toda uma série de outros encontros, de frustrações e embates da personagem com ela mesma, numa espécie de autodescoberta espiritual. Os sons que ela escuta a atormentam e isso causa uma sensação estimulante no público, pois Apichatpong não deixa o espectador se desvincular da camada sonora, e mais do que isso, chama o tempo todo a atenção para essa camada fílmica. É como se ele nos dissesse: "vejam, mas especialmente escutem também. Não se deixem enganar somente pela imagem." Lembrei muito do filme "O silêncio", do diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf, só que o personagem ali era um menino cego que enxergava mais do que todos os sãos da visão. Mas o que revela a aproximação de "Memória" e "O silêncio" é a maneira de como nos dois filmes os diretores forcem os espectadores a ouvir os seus filmes. O som serve de guia, de algo que está levando a narrativa para um determinado lugar.
As conexões que Jessica procura estão para além da epiderme, estão soterradas nas profundezas do solo, por isso precisamos de um contato estreito com a arqueologia (um tipo de necrotério como o diretor tão bem define) para desenterrar histórias e conhecimentos sobre nós tanto seres humanos quanto não humanos. Para Apichatpong o tempo precisa ser reorientado, as temporalidades precisam dialogar e até confrontar-se. Precisamos observar mais e ouvir também mais, mas não os sons que nos impõem e sim os sons que nos desconectamos historicamente, os que vem da natureza. A civilização ocidental não consegue mais dialogar com outras formas que ela enxerga como algo que atravanca a ideia de desenvolvimento tecnológico e de ocupação dos espaços. Nas grandes cidades as pessoas fogem da chuva, não a recebem com bom grado e sequer pensam sobre esse curioso fato. Apichatpong mostra ainda estratégias de isolamento de várias tribos para impedir a invasão dessa civilização branca e europeia, com sua extraordinária nanotecnologia e os aparelhos eletrônicos sofisticados e "facilitadores" da vida contemporânea.
"Memória" possui todas as principais marcas que definem o cinema de Apichatpong, o enredo fantasmagórico, o respeito profundo pelas forças espirituais da natureza, os planos ralentados e a presença da surpresa inesperada. O diretor filma na Colômbia e surpreende ao inserir na trama elementos de arqueologia, escavações, ossadas que nos remetem a tempos imemoriais. Mas nada em Apichatpong é casual ou solto quanto supõe alguns. Há uma confusão permanente entre o que está solto na narrativa com deixar sugestionado. Mais uma vez em uma obra de Apichatpong, a construção do tempo torna-se fundamental, e em "Memória" não é diferente, pois muito do que vai ser discutido possui uma base sutilmente histórica.
Pode-se afirmar que esse é um filme sobre memória (o título está ali para ratificar), mas sobretudo entre a relação metrópole e colônia, a cultura europeia e a ancestralidade dos países colonizados. É como se Apitchapong tivesse redimensionando a memória e ao mesmo tempo a ressignificando profundamente. Está na hora de olharmos retrospectivamente para aqueles que sofreram no passado com o apagamento. Quando Jéssica, a personagem de Tilda, encontra o Senhor que vive isolado na floresta, ela precisa primeiro se permitir a ouvir o outro, que lhe diz abertamente que não precisa de mais artifícios para memória, e que tudo que se precisa lembrar ele já sabe. Mas do que uma crítica, o pensamento desse Senhor revela uma assertiva perante a vida. Fica uma reflexão se tantos artefatos eletrônicos ajudam mesmo o ser humano a viver melhor.
A trajetória de Jéssica se encerra com o encontro com esse Senhor na floresta, mas até chegar nele existe toda uma série de outros encontros, de frustrações e embates da personagem com ela mesma, numa espécie de autodescoberta espiritual. Os sons que ela escuta a atormentam e isso causa uma sensação estimulante no público, pois Apichatpong não deixa o espectador se desvincular da camada sonora, e mais do que isso, chama o tempo todo a atenção para essa camada fílmica. É como se ele nos dissesse: "vejam, mas especialmente escutem também. Não se deixem enganar somente pela imagem." Lembrei muito do filme "O silêncio", do diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf, só que o personagem ali era um menino cego que enxergava mais do que todos os sãos da visão. Mas o que revela a aproximação de "Memória" e "O silêncio" é a maneira de como nos dois filmes os diretores forcem os espectadores a ouvir os seus filmes. O som serve de guia, de algo que está levando a narrativa para um determinado lugar.
Em "Memória" Apichatpong interroga o mundo pelo som, seja em um pneu estourado de um ônibus a causar um frisson em um centro urbano seja em alarmes de carros disparados ao mesmo tempo como em um movimento conspiratório das máquinas contra o silêncio que tanto atordoa o mundo contemporâneo. Porém, o diretor tailandês concentra seus esforços na personagem de Tilda Swinton, nos conflitos internos e nas buscas por entender os sons que lhe afligem e tiram a sua paz. Há um contraponto interessante em relação a essa busca de Jessica. Ela vai em um estúdio de som tentar reproduzir com a máxima fidelidade aquele estrondo que escuta e terá que descobrir que as máquinas podem até simular aquele som, mas jamais conseguirá compreendê-lo. Tem coisas que estão para além da exterioridade, precisam antes de um mergulho para dentro e é isso que Apichatpong fará para depois retornar à exterioridade para ressignifica-la. O que seria a nossa memória? A boa metáfora seria a da irmã de Jessica, que internada e dopada fica a acordar e falar para depois esquecer tudo o que disse antes. Essa é uma memória fugidia a apagar-se com muita facilidade, porém há outros tipos mais profundos a serem vividos desde que fujamos do mundo conturbado repleto de aparatos que sequestram nossa memória para arquiva-los em HDs e outros periféricos semelhantes.
"Memória" também fala de uma relação com o invisível, com o mundo das bactérias, fungos e outros micro-organismos que convivemos em nosso mundo. Tal como em "Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas" (2010) Apichatpong está a refletir sobre um mundo onde para compreendê-lo precisamos nos conectar com nossas intuições, nossa animalidade essencial e especialmente com a ancestralidade. Jessica representa os seres humanos ocidentalizados, aqueles que levaram a racionalidade ao extremo, apelaram para o avanço sem freios dos meios tecnológicos, desequilibraram a relação com a natureza, abusaram dela ao máximo até se desconectar por completo do mundo natural. Para a natureza ser entendida como fonte de autoconhecimento é preciso antes desfruta-la e não apenas estudá-la com finalidade medicinal ou qualquer outro aspecto acadêmico. O conhecimento essencial vem de uma vivência, não só de um estudo. Apichatpong discute isso, confronta não só os mundos mas os modelos de mundo, o que cada um tem a oferecer, mas o faz com a sutileza que lhe é própria, não desqualifica as culturas, as entende dentro do seu processo civilizatório.
As conexões que Jessica procura estão para além da epiderme, estão soterradas nas profundezas do solo, por isso precisamos de um contato estreito com a arqueologia (um tipo de necrotério como o diretor tão bem define) para desenterrar histórias e conhecimentos sobre nós tanto seres humanos quanto não humanos. Para Apichatpong o tempo precisa ser reorientado, as temporalidades precisam dialogar e até confrontar-se. Precisamos observar mais e ouvir também mais, mas não os sons que nos impõem e sim os sons que nos desconectamos historicamente, os que vem da natureza. A civilização ocidental não consegue mais dialogar com outras formas que ela enxerga como algo que atravanca a ideia de desenvolvimento tecnológico e de ocupação dos espaços. Nas grandes cidades as pessoas fogem da chuva, não a recebem com bom grado e sequer pensam sobre esse curioso fato. Apichatpong mostra ainda estratégias de isolamento de várias tribos para impedir a invasão dessa civilização branca e europeia, com sua extraordinária nanotecnologia e os aparelhos eletrônicos sofisticados e "facilitadores" da vida contemporânea.
Como sempre nos filmes de Apichatpong encontramos também em "Memórias" os acontecimentos enigmáticos e misteriosos, como o do engenheiro de som que Jessica trabalhou antes e quando vai reencontra-lo ninguém no estúdio o conhecia, mesmo ela o descrevendo com detalhes. Ou o mistério pode estar em uma nave espacial que emite sons que antes ouvimos mas não relacionamos com ela. A visita a uma médica traz questões fundamentais sobre a maneira como enfrentamos o mundo conturbado que organizamos como sociedade. Sentir a alegria e as tristezas da vida é fundamental e os antidepressivos tiram essa capacidade de se integrar com o mundo. Para Apichatpong estamos abdicando do mundo e os mistérios dele, as aventuras que ele pode proporcionar. A medicina, as religiões judaico-cristãs, a tecnologia e tantos aparatos nos aprisionaram em um mundo da exterioridade e esse desencontro com nós mesmos é o maior crime que cometemos enquanto civilização. Precisamos pensar e sentir fora dessas caixas salvadoras que elegemos como saídas e refúgios para a nossa solidão e insônia. A insônia de Jessica não deixa de ser uma outra metáfora da nossa atual existência. Viramos zumbis em um mundo que não desliga nunca (inclusive esse é um lema de um famoso jornal televisivo aqui no Brasil).
A descoberta de Jessica está no outro. Curioso, porque na língua espanhola a palavra outros está contida quando queremos falar nós (nosotros). Esse poderia ser o outro título do filme, mas como sabemos, não o é. Somos muito mais o outro que podemos supor e é isso que Jessica descortina para o público: o outro que vive em nós. A memória é mais um desses mistérios atemporais que Apichatpong nos brinda. Ela está tanto na trama quanto na forma fílmica que se pulveriza entre escavações e as peregrinações de Jessica. Apichatpong nos desmonta e nos desestrutura para poder chegar em seu universo. Jessica, nesse ponto, representa o próprio espectador, que também procura por respostas nesse mundo conturbado, onde não sabemos onde foi parar a essência. Respeitar a natureza é respeitar o sobrenatural que vem naturalmente dela. Sempre foi assim nos outros filmes de Apichatpong e creio que ainda o é, mesmo que em "Memória" ele saia de casa para reafirmar isso.
O que Apichatpong nos oferta é um cinema onde a contemplação funciona como o mote para se adentrar nesse outro mundo que está inserido fisicamente no mundo que vivemos, embora para vivencia-lo precisemos virar uma chave: a da memória. Quais memórias precisam ser contadas e consideradas? Se uma determinada memória nos trouxe nebulosa e cambaleante até aqui aos caos, será que ela ainda nos levará a algum lugar? São perguntas que o filme nos faz. Perguntas que parecem longínquas embora estejam muito mais próximas do que imaginamos. A certeza é que a vida é mais ampla do que estamos vivendo, tanto no que está ao nosso lado quanto o que nos reservam as profundezas do solo e o infinito céu. A abdução pode está por perto e ser apenas uma questão de perspectiva.
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