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DRIVE MY CAR (2021) Direção Ryusuke Hamaguchi


Sinopse:

O ator e encenador Yusuke Kafuku é convidado a encenar O Tio Vânia de Tchékov num festival de teatro em Hiroshima. No carro em que se desloca, conduzido pela discreta jovem Misaki, Kafuku confronta-se com o passado e o mistério sobre a sua mulher, Oto, que morrera subitamente levando um segredo com ela.

"Drive my car" e as silenciosas e turbulentas narrativas dos corpos, dos objetos e das artes

Quando Hamaguchi traz o universo de Tchékhov para dentro da trama de "Drive my car", penso que é um elemento crucial a ser posto para discussão, especialmente, porque narrativamente o texto de "Tio Vânia" fomenta cruzamentos de ideias que se alinham às ações dos personagens do filme, que o levam para além de um mero exercício de metalinguagem. A invasão do teatro no filme torna-se algo estruturante para a narrativa proposta por Hamaguchi. A cotidianidade de Tchékhov serve de método para o pensamento cinematográfico do diretor. Remete ao próprio contexto de produção do autor russo, que como escritor também se colocou no lugar de ter que fazer uma reflexão sobre a sua Rússia na virada do século XIX para o XX, um império de origem profundamente agrária que precisou da noite para o dia olhar para o futuro, para uma urgente modernização da estrutura social arcaica e feudal na qual estava assentada há séculos. As ranhuras dessa modernização tour de force, que cimentou a entrada de vários países orientais como partícipes de uma economia de mercado, estão no centro de várias produções artísticas e rondam as temáticas das obras cinematográficas após a Segunda Guerra Mundial, inclusive no Japão. De Kurosawa, passando por Ozu, Oshima, Kawase, Naruse, Kore-Eda, apenas para citar alguns, são vários(as) os/as cineastas que criaram sob o peso da história recente. Diferentemente da filmografia chinesa, a japonesa não retratou reinados e líderes (mas evidente que a filmografia chinesa não foi só isso), mas sim pessoas comuns, cujas vidas estavam situadas no turbulento cotidiano social e não nos âmbitos do poder político e da intriga palaciana. E pensamos 'Drive my car" como inserido nessa vertente do cinema japonês, que assimila no enredo cotidiano um contexto, uma discreta mas consistente camada histórica, afinal, esse filme não é sobre ir direto ao ponto numa linha reta, é muito mais uma viagem pelas estradas repletas de curvas que a vida nos oferece.

A invasão da história nas tramas dos filmes japoneses são mais constantes do que imaginamos, e o são ainda hoje. Quando Hamaguchi escolhe filmar boa parte de "Drive my car" em Hiroshima, todas as contradições existentes na história recente do lugar se expandem para dentro do filme, pois foi justamente nessa cidade que ocorreu uma clivagem histórica abrupta para o Japão, onde se precisou fazer um enorme esforço de reconstrução após a bomba atômica jogada pelos Estados Unidos em 1945. É nessa cidade marcada por um trauma profundo, que Hamaguchi vai desenvolver as agruras do luto de seus personagens, igualmente destruídos, ambos, como Hiroshima, em busca de reconstrução e ressignificação. E "Tio Vânia", de Tchékhov, não está ali casualmente, está a se confrontar com os personagens, para discutir os desencontros, os desacertos da vida, de personagens que convivem na infelicidade e ainda assim ter que tocar a vida, de aceitar e salientar as contradições inerentes à vida. Pode-se dizer que "Tio Vânia" funciona como um organizador de ideias. Não basta olhar para o encenador Kafuku, Misaki ou Oto para pensar "Drive my car", precisa-se também confronta-los em suas ações e falas com o texto de Tchékhov. Assim Hamaguchi estrutura o roteiro, tendo como base intercalar texto, montagem cênica de "Tio Vânia" com as questões dramáticas dos personagens.


Chegamos então ao ponto que julgo primordial e central: "Drive my car" não deixa também de ser um filme sobre a natureza das narrativas. E elas estão ali em profusão. São as narrativas de Oto, de Tchékhov, de Kafuku, de Misaki. Os personagens se alimentam e se retroalimentam por elas, assim como Hamaguchi também, e porque não dizer que nós espectadores idem. Hamaguchi nos lembra que as narrativas podem ser dúbias, elas podem conter de uma só vez completude e incompletude. Por mais que elas aparentemente possam se bastar em si, por trazer uma ideia concisa, só quando complementadas (ou seria melhor dizer confrontadas) por outras tornam-se realmente uníssonas para se amplificarem. O filme, cônscio disto, se inicia com a narrativa ficcional de Oto, esposa de Kafuku. Hamaguchi brinca com o poder da narrativa de oscilar entre o que se explicita e o que se esconde, sendo este último o que nos prende à ela. O sexo e o prazer, em simbiose, funcionam como um suporte para a escrita. Seria o caso de uma escrita sendo produzida diretamente pelos corpos? É como se Hamaguchi estivesse pondo as narrativas para transar, ou buscasse através delas sentidos para as vidas. Embora, para o diretor, o sentido que buscamos para a vida não esteja exatamente no outro e sim muito mais em nós mesmos, como diz à certa altura Misaki para Kafuku. Em 'Drive my car", esse outro é sempre o inatingível, pois somente podemos alcançar a nós mesmos, ao nosso árido deserto, as nossas próprias dores. Esse é um ponto cruel da narrativa áspera de Hamaguchi, dar uma volta imensa para ao fim chegar apenas em nosso vazio existencial. Hamaguchi se aproveita muito de Tchékhov para esse fim, para pontuar o quanto fazemos no teatro social para o pouco que efetivamente alcançamos na vida, o quanto somos indivisíveis, tristes e profundamente sós, com pequenos lapsos de encontros (mesmo incluindo aí os enganosos) que a vida nos reserva. E será que estamos preparados para aproveitá-los ou até mesmo para identificá-los? Somos continuamente preparados para as representações sociais, porém pouquíssimos preparados para encarar a nós mesmos e as nossas necessidades. Essas são as feridas que Hamaguchi homeopaticamente, cena a cena, vai pondo o dedo.

Há uma preocupação de Hamaguchi de construir os personagens alinhavados não só a uma paisagem urbana, mas sobretudo com alguns de seus elementos. As pontes, ruas, estradas, viadutos, túneis estão gravemente inseridos na narrativa de Hamaguchi e vão se sobrepondo sistematicamente na narrativa, afinal "Drive my car" também é uma espécie de road movie às avessas. Se um road movie clássico o que importa são as experiências do caminho, em "Drive my car" os caminhos levam os personagens para o lugar nenhum, ou para tentativas de encontros dolorosos consigo mesmos. O carro carrega um simbolismo de ser um bem móvel que jamais é capaz de adentrar nossa intimidade, ao nosso mais secreto lar, por mais que Kafuku ilusoriamente coloque o seu Saab 900 em um elevador quando chega em casa. Genericamente, podemos definir o carro como um objeto fabricado para o transitório, que nos permite vagar, é uma espécie de não casa, que nos possibilita desenraizar, capaz de desfazer até as fronteiras imaginárias. Em "Drive my car", o carro provoca, em si, uma narrativa. E é bom lembrar que estou pensando este filme estruturalmente com uma temática maior, ou central, que abarca as narrativas como leitmotiv, e o quanto elas permitem ou obstruem a existência humana. Mais do que ser sobre o passado, o filme é sobre a relação que estabelecemos com ele, tendo o luto como uma espécie de approach. Hamaguchi trabalha filosoficamente com a ideia de que cada ato que vivemos não pode ser mais retornado, o tempo que vivemos é sempre o presente, mesmo que ele não seja nada animador ou promissor. Apesar do passado não voltar, ele deixa marcas, traumas e a consequência mais visível disso nós costumamos chamar de culpa. Assim estão os personagens em "Drive my car", cada um a carregar a(s) sua(s) culpa(s), restando a eles tentarem remediar o passado com a criação de narrativas sobre ele. Esse é o ponto nevrálgico de 'Drive my car", cada passado vivido só retorna pela narrativa.


"Drve my car" em suas três horas até desliza em algumas irregularidades, ora dramatúrgicas ora temporais, mas sempre que pensamos que algo vai desmontar a estrutura fílmica, eis que as narrativas resgatam o filme. Poucos filmes hoje possuem uma consciência tão lúcida quanto "Drive my car" na inserção de narrativas na trama. Há um quê de poético nesse exercício cinematográfico de Hamaguchi. Diante à perplexidade dos personagens, Hamaguchi narra respeitando a temporalidade das sequências, dos silêncios e abusando dos planos fixos, bem afeitos à certa tradição cinematográfica japonesa, que prefere sempre o distanciamento perante aos personagens e à própria cena. A fotografia de Hidetoshi Shinomiya honra esse compromisso estético e também não causa grandes interferências na imagem, sempre guiada por uma paleta de cores sóbrias (com exceção da cor vermelha do carro), o que provoca no filme uma fluidez plácida que não permite que a narrativa tenha nenhum pungente sobressalto, pois não há demonstrações de maneirismos formais, como movimentos abruptos de câmera e ângulos inusitados. A música de Eiko Ishibashi segue o mesmo ritmo, soando como um contorno discreto a emoldurar o enredo, ela passa quase que imperceptível durante toda a trama. Entretanto, o maior desafio efetivo está na montagem de Azusa Yamazaki, que precisou amarrar as diversas narrativas (inclusive a literária, já que se trata da adaptação de um conto do popular escritor Haruki Murakami) que habitam "Drive my car". O roteiro adaptado por Hamaguchi, em parceria com Takamasa Oe, mostra-se hábil em fugir do literal, ao preferir fazer a história crescer a partir da ideia original. É possível reconhecer o conto a partir do filme, mas tanto a forma literária quanto a cinematográfica guarda em si as belezas que lhes são próprias.               

Como não paramos de falar de narrativas aqui neste texto, deixei para o final uma que é mais implícita ainda, a referência óbvia (que aliás não já estava no conto, que se intitula "Homem sem mulheres") à famosa canção homônima dos "The Beatles", que inclusive não aparece no enredo nem fora dele. Embora ela só apareça no título, há de fato uma fina ironia nessa escolha, já que a música de Paul e Lennon refere-se a um diálogo de um suposto homem com uma mulher na qual ele oferece para ser sua motorista (bom lembrar que no filme não há um convite, mas sim uma desconfiança do homem para com a motorista). Claro que o aspecto pop da canção, tanto da letra quanto da melodia/arranjo, são marcadamente relacionadas a uma discussão do mercado, o ritmo é de um rock n' roll que flerta com o estilo rockabilly e a letra fala da possibilidade do eu lírico vir a ser um astro. No filme "Drive my car" existem curiosidades em relação à música, como o caso do jovem ator que vai trabalhar com Kafuku e demonstra muita dificuldade para assumir o protagonismo na peça de Tchékov e acaba tendo mais publicidade por uma agressão cometida por ele. Há um certo sarcasmo nesse episódio e que muito diz sobre a capacidade desse nosso mundo midiático de transformar em astros pessoas que cometeram um crime ao invés de salientar os feitos humanos positivos. Seria então a música dos "The Beatles" mais uma narrativa implícita à trama do filme?


A meu ver, conforme já dissertei com ênfase nesta minha narrativa, em "Drive my car" as narrativas tornam-se as grandes protagonistas da trama e Hamaguchi traz uma discussão para lá de oportuna sobre elas. Dizem os historiadores que a arma mais eficaz das guerras contemporâneas é a das narrativas. Por meio delas o mundo se organiza, cabendo aos vencedores impor a sua versão dos fatos, até que alguém faça ressuscitar uma narrativa que a contradiga. A obra de Hamaguchi teoriza agudamente sobre o tema e ao fazer isso, ele abre um debate sobre o poder no cotidiano das grandes cidades, pois nele é que encontramos as vozes de pessoas comuns continuadamente invisibilizadas que refletem sobre o passado. Há narrativas que são sociais, e outras, que aparentemente perpassam somente o indivíduo. As duas são importantes e relacionam-se intrinsicamente. Ambas as perspectivas estão inseridas em "Drive my car". Quando uma cidade ou país faz um monumento sobre a explosão atômica, se consubstancia ali um viés narrativo e quando uma pessoa narra uma história fazendo sexo, ali na intimidade, nasce também uma outra construção narrativa. O tema é complexo, e jamais se encerrará em um texto, mas Hamaguchi torna plena a beleza dele em "Drive my car", ao saber dosar com maestria, as narrativas presentes tanto no corpo quanto nos objetos. Para ele, filosoficamente, o poder das artes está na capacidade de condensar a pluralidade das narrativas existentes, sempre as confrontando e "Drive my car" é um magnífico exercício a serviço dessa ousada ideia narrativa. Se o mundo precisa de narrativas, Hamaguchi também não passa incólume por essa obsessão, cada vez mais urgente na contemporaneidade.



Comentários

  1. Gostei muito do filme e de seus comentários que ampliaram minha visão do mesmo

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    1. Obrigado Ceci!! Que bom que o texto expandiu a sua percepção do filme!

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  2. Gostei muito da sua crítica que embora grande como o filme não deixe cair a vontade de continuar lendo como vendo no filme

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    1. Obrigado Ana, tanto pela leitura quanto pelo comentário!

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