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RETRATO DE UM CERTO ORIENTE (2024) Dir. Marcelo Gomes

Texto por Marco Fialho Se o livro de Milton Hatoum esbanja pelas múltiplas vozes que imprime em seu livro Relato de um Certo Oriente , Marcelo Gomes em Retrato de um Certo Oriente , aposta apenas na centralidade de uma das histórias do livro, a de Emilie (Wafa'a Celine Halawi), desde o Líbano até fixar residência em Manaus. O filme marcado pelo singeleza, com interpretações que fogem da eloquência, onde o menos torna-se mais. Uma obra ditada pelos olhares e pelos pequenos indícios deixados por gestos sutis, porém firmes de seus personagens. Essa é uma história de desterro, em que dois irmãos, Emilie e Emir (Zakaria Kaakour), fogem do Líbano para não serem mortos pela guerra que domina o país. Retrato de um Certo Oriente encara o multiculturalismo no qual as guerras são grandes motores. Desenraizar é uma forma de defesa encontrada como um caminho de sobrevivência.  O que mais encanta em Retrato de um Certo Oriente é a capacidade de Marcelo Gomes criar imagens simples e potentes, com
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171 (2023) Dir. Rodrigo Siqueira

Texto por Marco Fialho 171 , dirigido por Rodrigo Siqueira, traz para o cerne de sua obra a discussão sobre discursividade e o teor de verdade e mentira existentes tanto na vida quanto no cinema. Contudo, não se deve esperar de 171 um viés convencional ou didático, ainda mais que a matéria-prima escolhida para tal feito são as vozes e os corpos de seis pessoas presas por estelionato. A maior inspiração de Rodrigo Siqueira para edificação do filme é simplesmente Seis Personagens à Procura de um Autor , um clássico da dramaturgia teatral de Luigi Pirandello e um marco fundamental para se pensar a natureza do ato da representação artística. A proposta de  171  consiste em desafios, ora para a dramaturgia ora para a espectatorialidade. A dramaturgia do filme coloca de frente a questão da representação, encarada fundamentalmente como um pressuposto metodológico. Existe a verdade ou a encenação dela? Mais importante do que ser é aparentar ser. Somos todos atores perante a encenação da vida?

O SOL POR TESTEMUNHA (1960) Dir. René Clément

Texto por Marco Fialho O Sol Por Testemunha  é um thriller tomado pelo requinte visual e uma narrativa envolvente, com a presença eletrizante do astro Alain Delon como o vigarista Tom Ripley, em um de seus grandes papéis no cinema, como um protagonista que conduz a atenção da câmera e do espectador a cada cena. Aliás, essa foi a obra que o consagrou como símbolo de beleza e sedução.  O filme de Clément é de certo modo simbólico, representa uma sociopatia e um tipo de ideal de riqueza, da conquista de um desejo de ser um homem que apenas consiga viver o lado bom da vida. O Sol Por Testemunha também trabalha uma oposição entre uma América próspera e uma Europa decadente, mas símbolo do refinamento com suas praias e roupas de luxo, suas grifes imponentes.  É curioso ver Alain Delon, um francês, incorporar um personagem americano, não deixa de ser um chiste, pois a história de Ripley brinca com um desejo dos Estados Unidos serem a nova Europa. Vale lembrar o quanto a Europa simbolizava a s

O SEGUNDO ATO (2024) Dir. Quentin Dupieux

Texto por Marco Fialho  Talvez O Segundo Ato , filme dirigido por Quentin Dupieux, seja o primeiro a adentrar de fato, de forma direta, na discussão da Inteligência Artificial no que tange a direção de um filme. Durante toda a filmagem, Dupieux brinca com camadas da relação entre atores e o seu ofício, já que aqui os personagens são atores, que fazem por sua vez papéis de atores.  O elenco estelar, composto por Louis Garrel, Lea Seydoux, Vincent London, já se mostra em si algo curioso, por esses famosos atores fazerem papéis também de atores. Várias brincadeiras com o cinema são realizadas, como a que simula o convite de Paul Thomas Anderson a um dos personagens, o que desperta o ciúme de outros, o que joga com essa espera que os atores tem por trabalhar com diretores importantes. Mas como fica então o cinema dirigido por uma inteligência artificial? Dupieux, de certo, debocha um pouco de tudo isso.    O Segundo Ato é composto por alguns longos planos sequências de conversas entre os p

O ÚLTIMO JUDEU (2024) Dir. Noé Debré

Texto por Marco Fialho  Não podemos nos levar pelas aparências. Apesar de O Último Judeu entoar uma comédia leve de costumes judaicos, ela revela algo muito mais cruel em sua outra volta do parafuso. O filme de Noé Debré como um bom veneno vai nos asfixiando cena a cena e quanto mais nos familiarizando com a vida em torno do jovem judeu Bellisha (um Michel Zindel muito bem situado no personagem).  Podemos relacionar O Último Judeu a uma situação bem mais ampla da história, embora ela seja inclusive citada em alguns momentos na trama. Falo aqui do sionismo e fúria de guerra que o atual Estado de Israel vem alicerçando sua política externa. Há, sem dúvida, um mal-estar presente no ar e basta você mencionar que é judeu para receber um olhar ou uma reação imediata de repulsa. E isto está inserido e precipitado radicalmente no filme, e Bellisha sofre com essa situação.  Bellisha mora com a mãe em um conjunto residencial todo subsidiado pelo Governo Francês e habitado por povos que atualment

AS TRÊS AMIGAS (2024) Dir. Emmanuel Mouret

Texto por Marco Fialho Em  As Três Amigas , o diretor Emmanuel Mouret vem coroar o seu enorme talento para fazer roteiros bem amarrados, perspicazes e com requinte de uma diversão que perpassa tanto os personagens quanto o público que está assistindo ao seu filme, assim como já havia realizado em seu ótimo trabalho anterior, Crônica de Uma Relação Passageira , exibido no Festival Varilux de Cinema Francês de 2023.  Emmanuel Mouret ratifica o seu apreço pelas narrativas românticas de Woody Allen, indo fundo nas comédias de costumes contemporâneas, cujas influências impregnam o seu estilo ao mesmo tempo pessoal e cativante. Para isso, ele conta com intérpretes afiados, capazes de construir personagens interessantes, pulsantes, que parecem saídos de uma esquina qualquer, tamanha humanidade que eles exalam quando estão em cena.     O filme inicia com um narrador onipresente, que com total liberdade começa a apresentar Lyon, cidade onde a história transcorrerá, e os personagens. A ideia pod

GLADIADOR 2 (2024) Dir. Ridley Scott

Texto por Marco Fialho Em  Gladiador 2 , o diretor Ridley Scott levanta um discurso para lá de defasado, já que o cerne de sua proposta é a de restauração de um Império Romano decadente, que se desvirtuou do caminho original e ideal ditado pelos grandes líderes do passado. O roteiro do filme se impõe como se fosse possível a portentosa e arrogante Hollywood, reescrever a história a sua revelia.  Mesmo que o Império Romano se situe no tempo séculos e mais séculos atrás de nós, é inevitável não ler Gladiador 2 como uma referência mais do que direta à política dos Estados Unidos ou pelo menos como uma maneira estadunidense de pensar o mundo. Não deixa de ser um certo vício doentio o de acharem que só existe a forma deles de se conceber o mundo e como isso limita as produções vindas desse país.    Mas enquanto cinema o que dizer de Gladiador 2 ? Pode-se dizer que esse é um produto altamente descartável, com algumas cenas que chegam às raias do constrangimento, como a da morte de Arishat (Y

DAAAAAALI ! Dir. Quentin Dupieux

Texto por Marco Fialho Daaaaaali! é uma intrigante fábula onírica e cômica de Quentin Dupieux. Não é um filme biográfico sobre Salvador Dali, mas sim sobre o universo e a personalidade do artista espanhol, mais especial sobre sua personalidade egocêntrica.  A mistura de fábula e comédia leva o filme para um registro bem longe do realismo. A narrativa vai se delineando de maneira onírica, nos obrigando sempre a rever nossos pontos de vista. Quentin Dupieux é bem feliz em suas escolhas narrativas e temos a impressão de que estamos assistindo a um conto literário visual.  Os 70 minutos do filme caem como uma luva em sua precisão rítmica. Nada parece fora de lugar, nem mesmo o constante desconcerto de um sonho que parece infinito. O jogo do infinito e da finitude são elementos intrínsecos à obra de Dali e eles estão presentes também no filme. Um exemplo ótimo desse jogo acontece logo no início, quando Dali chega no hotel para dar uma entrevista e ele caminha pelo corredor até chegar ao qua

O BOM PROFESSOR (2024) Dir. Teddy Lussi-Modeste

Texto por Marco Fialho  Logo que comecei a ver O Bom Professor , filme dirigido por Teddy Lussi-Modeste, lembrei de A Caça (2012), de Thomas Vinterberg, justamente por ambas as tramas esbarrarem em denúncias injustas de assédio sexual de professores com alunas. A questão de A Caça era até mais sensível pelo fato do personagem de Mads Mikkelsen lidava com crianças em idade de creche, enquanto em O Bom Professor , o personagem Julien (François Civil) lida com crianças no final do ensino fundamental. Filmes realizados a partir de ambientes escolares, em especial em salas de aulas, invariavelmente, partem de situações de tensão, já que o que se reflete ali são as relações de poder entre professor e aluno. O Bom Professor até reverbera esse assunto, o desse poder que sempre cria momentos de discussão entre professor e aluno, embora essas conversas poderiam ser mais aprofundadas e revelar mais o caráter autoritário adotado no ato de ensinar das maiorias das escolas tradicionais.  Era de esp

OURO VERDE (2024) Dir. Edouard Bergeon

Texto por Marco Fialho Ouro Verde  tem como mote a luta pela preservação ambiental de Martin (Félix Moati) um jovem francês, que vai à Indonésia para poder terminar sua pesquisa sobre o tema, quando se depara com Nila (Julie Chen), uma corajosa ativista que tenta defender a preservação da floresta em meio a um ataque ostensivo de uma milícia que representa os interesses escusos de uma indústria que impõe o desmatamento na exploração do óleo de palma.  Contado assim, o filme parece possuir um grau de ação política de grande intensidade, só que na realidade o filme se perde na história do estudante branco europeu preso injustamente em um país onde a elite política é retrógrada e injusta, com um sistema judicial para lá de atrasado e arcaico. Evidente que a prisão do rapaz por tráfico de drogas foi forjada e isso sabemos desde o início. E sabemos disso ainda porque já vimos acontecer em tantos outros filmes, desde o sucesso de O Expresso da Meia-Noite ,  lá  em 1978, que retratava o drama