Texto por Marco Fialho
Iracema - Uma Transa Amazônica não deixa de ser uma obra fundadora, apesar de incompreendida e censurada em sua época de lançamento, em plena ditadura militar em 1975, tempo do ilusório lema "Brasil: ame-o ou deixa-o", que inclusive está presente no filme. O relançamento de uma cópia em 4k dessa obra-prima de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 50 anos depois, só vem reforçar a sua relevância para o nosso cinema, a atualidade temática e narrativa desse que é um filme moderno, sem medo de ousar na forma para que possamos compreender as profundezas da vida brasileira, de um Brasil que poucos conheciam então e que se revela surpreendente por captar as entranhas e os equívocos da ideia de que um desenvolvimento econômico corresponde em igual proporção ao crescimento social humano.
Há um esforço, da parte dos diretores, de atualizar a visão romântica no livro de José de Alencar (por isso não se pode crer que o nome Iracema seja casual), dar uma nova feição a relação idílica entre a relação entre o colonizador e mulher indígena. Obviamente, há uma versão aqui mais moderna, de ver um Brasil já desfigurado pelo poder econômico e o quanto isso afetou a cultura dos povos originários. Iracema ser uma indígena prostituta diz muito não sobre ela, mas sobre as relações que a forjaram, a marginalizaram e a imagem no final de Iracema desdentada é de uma força descomunal. Tião não deixa de ser o homem branco vindo do Sul do país para ser um aliado do sistema na exploração da terra e para objetificar as mulheres do Norte. Por isso, não cabe mais a visão idílica de Alencar (mesmo que o autor já estivesse ignorando a violência colonizadora), a realidade hoje continua brutal e o filme documenta esse processo no momento em que uma nova destruição está em andamento.
O que mais surpreende em Iracema - Uma Transa Amazônica não é só a mistura da narrativa documental com a ficcional, mas como ela se efetiva. De início, vemos a vida de uma família que vive em um barco e junto a ela tem uma menina com feições indígenas que ao que tudo indica é uma desgarrada, que pega carona para se lançar no mundo urbano de uma Belém do Pará dominada pelo desenvolvimento econômico, típico de uma região portuária, com um cais movimentado e com seus bares com música alta e prostituição. O interessante é o quanto vamos descobrindo o filme junto com a direção, com a câmera voltada diretamente a acompanhar as andanças curiosas de Iracema por esse mundo repleto de descobertas. O processo de Iracema chega a ser assustador, com falas que mostram o quanto ela se autodeclara não indígena, o que já é em si uma forma de agressão do mundo, já que se enxergar como indígena é demonstrar um traço de atraso cultural, de quem vive no meio do mato apartado da civilização.
Os diretores não perdem muito tempo em explicar os passos de Iracema, do porquê ela chegou ali, suas motivações ou como foi parar na prostituição, a discursividade de Iracema - Uma Transa Amazônica caminha em outras direções, sem grandes preocupações com causas, apenas optando por descrever com a câmera os passos dessa menina de 15 anos, que se aventura por um mundo até então desconhecido para ela. Mas se a princípio tudo parece ser sobre ela, logo veremos que o filme vai além ao descortinar não só a vida de Iracema (Edna de Cássia), mas todo o entorno de uma região violenta e largada ao Deus-dará, onde a lei do mais forte prevalece. Curioso com esse atípico road movie parece ter servido de inspiração para o filme Bye Bye Brasil (1979), de Cacá Diegues, cuja proposta era a de mergulhar nas profundezas do país por meio de uma trupe circense.
Os diretores não cansam de mostrar registros de imagens de devastação do solo e de queimadas para a criação de gado. Mesmo que Iracema - Uma Transa Amazônica possa ser lido como uma crítica feroz ao extermínio do solo, do ecossistema e dos indígenas, o filme cria uma linguagem criativa, solta, como se a câmera estivesse a serviço dos atores. Esse aspecto inspirado da mise-en-scène é significativo e permite que a trama tenha uma fluência e uma organicidade, pois há um desejo de que o universo ficcional esteja engajado no documental, um prosseguimento dele.
Vale destacar o papel crucial dos personagens em cena, tanto os ficcionais quanto os documentais. De repente, a trama se encontra com o Círio de Nazaré e a direção não foge dessa festa popular, se engendra nela. Tião (Paulo César Pereio) e Iracema participam dela como diversos outros e essa manifestação fílmica se dobra aos desdobramentos do festejo. Sim, o filme não é maior do que a realidade, ele se desenha como partícipe dela, entrosado a ela. Há uma notória ausência de hierarquia entre o ficcional e o documental, ambos dividem a narrativa amigavelmente. Mas evidente que não perdemos o foco dos protagonistas Tião e Iracema, sem contar na amiga prostituta de Iracema, vivida exemplarmente por Conceição Senna.
Iracema - Uma transa amazônica é aquele filme que chama atenção pelos desafios que impõe, mas também pelos detalhes que enseja, como se utilizar das propagandas realizadas pelo governo militar em prol do desenvolvimento da região amazônica, como "esse é um país que vai para frente". E o que dizer da parte musical, que emoldura com excelência e eficácia o universo abordado, como a música "Você é doida demais", de Lindomar Castilho, que anos mais tarde seria um sucesso nacional como abertura de um programa de TV.
Assistir a Iracema - Uma Transa Amazônica é, ao mesmo tempo, fazer um tour pelo chamado milagre econômico do governo dos militares nos anos 1970; mergulhar na nossa história secular de destruição de culturas ancestrais; e ainda ver perplexamente o quanto continuamos afundados nas mesmas problemáticas: na miséria da população em geral, na exploração desmedida da parte de uma elite obtusa e na invasão do nosso território por potências econômicas mundiais e grandes empresas multinacionais. Mas o filme brilhantemente faz mais do que tudo isso ao conseguir penetrar na alma do povo, que luta para ter uma dignidade (Iracema), mesmo quando as situações surjam sempre como as mais adversas ou tenta se dar bem pegando carona na ambição alheia (Tião), embora no fundo seja tão miserável quanto o primeiro tipo. Esse é um filme para ver e rever sempre, até mesmo na tentativa de sonhar que a realidade que ali aparece registrada, um dia seja vista como algo do passado.
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