Texto por Carmela Fialho e Marco Fialho
O filme Nada, do diretor Adriano Guimarães com as atrizes Bel Kowarick e Denise Stutz, mergulha no universo das doenças contemporâneas causadas pelos avanços tecnológicos relacionados com a questão da memória individual e coletiva. A relação das irmãs Tereza, que mora na fazenda no interior de Goiás e Ana, artista plástica que reside em Brasília, se aprofunda com a doença de Tereza e a predisposição de Ana em ajudar a irmã que não tinha mais convivência desde a juventude, isto é, depois de passados cerca de trinta anos.
A ida de Ana para a fazenda, a mergulha no universo das lembranças do passado e descortina mistérios do local, onde com a instalação de uma antena, há cerca de cinco anos, modificou a vida dos moradores. O que a princípio parecia uma vida pacata no campo, vai se revelando durante o filme uma mistura entre realismo fantástico e investigação de Ana sobre os reflexos inesperados dessa tal antena na vida de cada depoente.
A fotografia de André Carvalheira instaura o formato de um falso documentário (mockumentary), com depoimentos frontais em preto e branco, enquanto no que seria a ficção as imagens aparecem coloridas. O diretor inclui depoimentos de moradores sobre como foram afetados pela antena, que formam um tipo de inventário da vida no local. Essas entrevistas são realizadas por Ana, que as capta para depois inseri-las em suas obras artísticas (a artes visuais penetrando o cinema). Esse dispositivo introduz uma metalinguagem, de uma obra invadindo outra, mesmo que no ato de sua espectoralidade não entendamos ainda a sua completude, que só será revelada mais adiante no final.
O mais interessante de Nada é o quanto de mistério que ele traz para o espectador, já que o filme transita entre o drama familiar e uma espécie de ficção científica, nos levando em vários momentos a questionar as intenções de Ana ao apoiar a irmã no fim da vida. Esse aspecto sobrenatural, de uma antena que modifica a percepção dos moradores sobre a vida nos fez lembrar curtas como Quintal (2015) e Fantasmas (2010) da produtora mineira Filmes de Plástico, que dialogam com temas bem parecidos, mas o mais instigante é que Adriano Guimarães trabalha na fantasmagoria sem caminhar Nada para o universo dos filmes de terror e sim para uma contemplação melancólica do espaço e do tempo.
Nada, de certa forma também evoca Stalker, o contemplativo filme de Andrei Tarkóvski, pois a antena nos lembrou a tal energia vinda da "Zona" do filme russo, só que lá havia a busca desse lugar proibido capaz de transformar as pessoas, enquanto em Nada essa força é sabida que vem da tal antena, mesmo que isso em nada explique os mistérios e as transformações a ela impingidas. Assim, com poucos recursos dramatúrgicos, Adriano Guimarães impregna a mise-en-scène para o mínimo e isso é visível até na atuação dos atores, que performam como se respondessem somente aos impulsos cotidianos, sem arroubos e excesso de carga dramática, o que não quer dizer que não haja emoção envolvida, pois ela está ali placidamente se instaurando, embora sem fazer alarde. O filme também não deixa de ser sobre o reencontro afetivo de Ana e Teresa, embora essa reconexão se faça abertamente ao ritmo de Teresa.
É bastante ousada a narrativa proposta por Adriano Guimarães, em especial por tratar de um tema tão tecnológico sob um viés diferente, trazendo para o filme o ritmo e a lentidão típicos do ambiente do campo, o que de certa maneira contradiz a aceleração tecnológica da urbanidade, criando um atrito para lá de provocador para o espectador. O silêncio que predomina na obra é perturbador e induz à contemplação do espaço e abre as brechas para a eclosão do mistério e do intangível. Aos poucos, lentamente, fendas sensoriais se anunciam para nos imergir numa viagem temporal.
Há então um grande aspecto simbólico vindo da tal antena, esse elemento tecnológico de intervenção na vida das pessoas a partir de um certo momento histórico e capaz de mudar costumes e hábitos culturais. Nada flerta com o poder que um meio tecnológico tem de alterar os estágios de memória da humanidade, daí fazer sentido buscar um local inóspito e mais próximo do natural para mostrar esse impacto. Por isso, o desfecho do filme também é bastante interessante ao juntar vida, arte e memória. Talvez chamar esse filme de Nada seja até uma ironia, dado a tantos mistérios e causos que ele carrega por baixo de uma aparente pasmaceira, fora o mergulho que ele permite nos processos de memória de cada um de nós.
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