Pular para o conteúdo principal

YÕG ÃTAK: MEU PAI, KAIOWÁ (2025) Dir. Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luísa Lanna


Texto por Marco Fialho

Confesso o quanto é cada vez mais complexo analisar um filme como Yõg Âtak: Meu Pai, Kaiowá, dirigido por Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luísa Lanna. O cinema realizado por indígenas, mesmo quando em parceria com brancos, vem demonstrando uma faceta cada vez mais própria desde que diversas nações indígenas se apropriaram dos aparatos e equipamentos de filmagem do homem branco para criar uma linguagem audiovisual condizente com as narrativas orais e tradicionais, traços fundamentais dessas culturas ancestrais, povoadas de mitos e saberes perpassados de uma geração a outra durante séculos. 

Inclusive, Yõg Ãtak: Meu Pai Kaiowá mexe com questões ligadas à contínua agressão dos costumes ancestrais desferidos pela nossa avassaladora e ambiciosa cultura branca. O que mais se nota nesse filme é o quanto essa cultura vem se deteriorando por meio de uma dispersão territorial contínua dessas nações cada vez mais aculturadas, como se a cada novo filme indígena revelasse mais um estágio do processo decolonial. Sente-se uma franca perda de identidade, pela sistemática ação predatória da cultura branca que devasta cada vez mais os vínculos que gerações muito recentes ainda lutam para preservar, embora tudo esteja se fragmentando a olhos vistos.

O cinema indígena passa por uma tragédia inescapável: é possível falar de qualquer aspecto da cultura indígena sem mencionar o homem branco? O decolonial está intrínseco ao que é o indígena hoje. Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá narra a procura da cineasta indígena Sueli Maxakali (dos ótimos Yãmïyhex: as Mulheres-Espírito e Nuhu Yãgmü Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!, filmes de 2019 e 2020, respectivamente) e sua irmã Maísa, pelo pai Kaiowá Luis, que reside no Mato Grosso do Sul, mas que sofreu vários deslocamentos a partir da intervenção autoritária do governo da ditadura militar, que tentou à força transformá-lo em um soldado e em um submisso trabalhador braçal. O resultado disso foi transformar Luis em um andarilho, indo de uma terra à outra, resistindo às investidas do governo, o que provocou o desenraizamento e a criação de dois núcleos familiares.   

Os diretores e diretoras do filme fazem longos planos, a maioria deles com a câmera fixa, para retratar essa busca pelo passado perdido. Logo na primeira sequência, Sueli faz um vídeo apresentando cada um de seus membros ao pai que pretendia visitar numa longa  viagem no escuro até o Mato Grosso do Sul. O vídeo mostra o tamanho da família construída após a partida do pai da aldeia que fica nos arredores do município de Teófilo Otoni (MG). Alguns rituais estão presentes, alguns deles de origem Kaiowá, muito como forma de resistência de uma cultura sistematicamente atacada, seja fisicamente por fazendeiros ou culturalmente pela incorporação de costumes e hábitos do homem branco já bem visíveis no cotidiano da família Maxakali, como o uso ostensivo do celular, das vestimentas e utensílios domésticos, como a panela de pressão. Muitas vezes essas absorções de costumes dos brancos soam como agressões simbólicas, que podem até passar desapercebidas em um primeiro momento, mas que sobressaem perante um olhar mais cuidadoso e atento. Por isso, cada registro de um canto ou de um rito ancestral se configura como uma força cultural de resistência e potência.    

Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá não deixa de ser um retrato dessa aculturação vertiginosa que os aparatos tecnológicos brancos só acentuam a cada instante. A luta pela preservação dos costumes é intensa, embora a cada filme de Sueli e Isael nota-se o quanto esfacelada e fragmentada é a situação atual. Interessante como a despeito disso tudo, a língua ainda é um forte elo cultural e uma tentativa preciosa de preservação por parte dessas nações, assim como os rituais que às duras penas vão sendo lembrados e cultivados, mesmo que a dispersão do território seja um obstáculo real e contínuo para a manutenção das tradições. 

Mas aí entra a parte mais desafiadora para nós brancos que vemos esses filmes indígenas na busca de tentar adentrar nessa cultura repleta de ancestralidade e tão perseguida pelo poder econômico, que só quer explorar as riquezas do território e a própria mão-de-obra dos indígenas. É preciso, antes de tudo, da nossa parte, ter uma grande capacidade de escuta, para que se possa compreender como essas nações estão a adaptar os meios tecnológicos do homem branco às suas narrativas tradicionais e os utiliza-los como um elemento de luta política seja para denunciar as ações violentas do homem branco ou para fortalecer suas tradições por meio de registros de ritos ancestrais. É o vídeo a revelar as contradições do processo, um tipo de mal necessário, que auxilia na proteção material e imaterial de uma cultura que sofrendo um constante massacre.

O trabalho de Sueli e Isael Maxakali talvez seja bastante consistente e propício, até pela constância, para se penetrar numa maneira muito própria de se ver o mundo dos indígenas, de captar as necessidades estruturais de uma gramática que está sendo construída diante dos nossos olhos. O que eu posso adiantar é que há uma potência (que me perdoem por utilizar um termo tão desgastado ultimamente, mas ele é o mais adequado nesse caso) nisso tudo, pois há algo de autóctone nessa expressão, e isso é o que mais interessa aqui e o que precisa ser sublinhado e melhor refletido. A montagem, por exemplo, é formada por longos blocos que servem para ampliar o arco temporal da trama e expandi-la para importantes revelações do passado. Sem contar que a montagem possibilita apreender uma noção muito própria de tempo dessas nações, por sinal, é bem distinta da nossa tradição. 

Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá reconstrói a vida familiar de Sueli através de em uma narrativa fractal, que combina demais com a própria história fragmentada de sua família, espelho da diáspora sofrida por algumas etnias indígenas que foram impactadas diante as contínuas intervenções dos homens brancos. De maneira pessoal, sobretudo pelo esforço de Sueli, constata-se o quanto a narrativa contempla um resgate do coletivo familiar em um cenário de dispersão territorial, ocorrido ao longo da história dessas populações, inclusive o papel da ditadura militar (1964-1985) no processo de desintegração cultural de muitas nações indígenas. 

Esse fenômeno já havia sido mostrado por Andrea Tonacci em Serras da Desordem (2006), quando o diretor acompanhou e amparou o indígena Carapiru, logo depois do massacre de sua tribo nos anos 1970. A maior diferença entre os dois projetos está na perspectiva da narração. Em Serras da Desordem, o diretor narra a partir de sua experiência com esse personagem indígena, enquanto o filme de Sueli e parceiros, discute a questão por dentro, tendo como base sua própria visão cosmogônica. Embora as abordagens desemboquem no mesmo destino, o caminho de cada um os diferencia imensamente. O dispositivo utilizado pela direção em Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá é o da busca, não só do pai de Sueli, mas a partir dela propiciar um mergulho no passado dos indígenas para se entender a atual situação deles, que beira o aviltante.     

Sueli Maxakali, e os outros diretores parceiros nesse projeto, constroem uma árvore genealógica de Sueli, mas atinge um complexo jogo social e histórico dessa família formada por duas nações indígenas diferentes, mas ambas amparadas pela narrativa oral como fonte estruturante do filme, o que é compreensível pela dimensão cultural dos povos indígenas, referenciada a partir do respeito à ancestralidade dos entes mais velhos, que contam as histórias de como os Kaiowá chegaram na terra dos Maxakali pelas mãos dos soldados da ditadura para que eles trabalhassem à terra com tratores. É interessante ainda como os diretores tornam o processo do filme transparente ao permitir que o espectador entenda como as entrevistas e conversas foram construídas, deixando até ficar subtendido que cabe sempre uma dose de fabulação por parte dos personagens, em especial quando Luis está a se pronunciar com seu carisma.      

Antes de tudo, Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá é um filme importante como reconstrução histórica a partir do ponto de vista dos povos indígenas, mas também por incorporar a tradição oral como principal veio narrativo desse povo, mesmo que isso seja feito pelos meios tecnológicos do homem branco, com suas câmeras e celulares, fundamentais para denunciar as violências que continuam rondando essas populações ancestrais espalhadas pelo solo brasileiro. É sensacional como Sueli, Isael, Roberto e Luísa tomam esses meios para construir uma narrativa de resistência, de luta e de reconstituição de uma verdade histórica de como as nações Kaiowá e Maxakali foram sistematicamente dispersadas e aculturadas pela ganância da elite branca que impôs dominação e condições de vida que beiram a degradação. Se cinema é narrativa, Yõg Ãtak: Meu Pai Kaiowá possui méritos inconteste por permitir que ouçamos a voz e a versão de quem mais perdeu no processo de encontro das culturas brancas e indígenas.                


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...