Ponto Oculto tem um roteiro engenhoso e por isso é daqueles filmes que quando acabam dá vontade de reiniciá-lo de imediato, para que o quebra-cabeça proposto pela diretora alemã-curda Ayse Polat possa ser reconstruído com maior exatidão em nossas cabeças. O grande mérito do filme é como as diversas câmeras que ele nos oferta como narrativa vão se entrecruzando e formando um mosaico de pontos de vistas desafiadores e elucidativos.
Na trama, uma equipe de filmagem alemã realiza um documentário sobre a perseguição sofrida pelos curdos que vivem em cidades remotas na Turquia e que enfrentam as ações ostensivas do JITEM (Serviço Secreto Turco), um braço violento do governo que prende e mata militantes curdos que fazem oposição política ao regime. As câmeras de vídeo do JITEM são utilizadas como uma forma inescrupulosa de vigilância, que chega a escondê-las em vários pontos nos apartamentos de descendentes de curdos, ferindo até a intimidade e a privacidade das pessoas.
Lentamente vamos conhecendo os interessantes personagens, como a família de Zafer (Ahmet Varli), um homem que vive assombrado pela perseguição, que trabalha para o JITEM, mas que também é investigado por ele, pois há uma suspeita de que faça um trabalho duplo. Sua filha Melek (Çagla Turga), uma criança com estranhos poderes sobrenaturais, flutua pelos dramas dos personagens, muitas vezes os revelando, numa curiosa interação com o mundo violento dos adultos. Leyla (Aybi Era), vizinha de Zafer, é uma tradutora misteriosa que ninguém sabe de qual lado está e que por isso desperta a desconfiança de todos.
A abordagem sinuosa de Ayse Polat instaura no filme um clima de mistério e suspense, salientado por uma sonoridade cuidadosa, quase ausente, que colabora singelamente para uma tensão a partir da montagem temporalmente descontínua, assim como a profusão de câmeras de celular a registrar e invadir constantemente a narrativa. Essas diversas câmeras, inclusive, trabalham não só uma ideia de metalinguagem mas também como a nossa vida está constantemente mediada por esses indiscretos aparelhos eletrônicos. Surpreendentemente, a visão sobrenatural de Melek torna-se um elemento de lucidez em meio às atitudes de intolerância e desconfiança vindas de todos os lados.
A complexidade de Ponto Oculto reside numa leitura de uma mundo tradicional e arcaico que Ayse Polat realiza a partir de elementos estritamente contemporâneos e tecnologicamente desenvolvidos. A câmera precisa ser vista aqui para além de um instrumento estritamente fílmico, já que assume na trama uma função de personagem com um caráter detetivesco. Muito do que acompanhamos da trama chegam pelas câmeras invasivas plantadas agressivamente pelo serviço secreto do governo turco. Ayse Polat conduz tudo de maneira a desnudar uma vida social impossibilitada pelo absurdo da violência política, em especial quando incrustada nos meandros mais íntimos e familiares do país, o Estado funcionando como uma entidade repressora e controladora ao extremo, mesmo que ao nível da aparência e do corriqueiro tudo pareça quase imperceptível.
A ideia de forjar uma mise-en-scène a partir das câmeras de segurança traz para Ponto Oculto uma verdade determinante para a narrativa, um dado que adiciona um componente pretensamente documental. A fotografia sempre parece querer esconder algo, ainda mais que as câmeras escondidas fabricam enquadramentos duros, sem a movimentação que a cena clama para que nossos olhos possam ver os acontecimentos de maneira mais clara. Isso instaura um elemento lúgubre à ação, ao mesmo tempo que nos torna cúmplices da invasão do governo à vida privada dos personagens. Ayse Polat está a todo instante nos colocando em dúvida acerca da imagem que vemos. pois não sabemos se ela está vindo do filme, do documentário, da câmera de vigilância ou de qualquer outra instalada em qualquer outro lugar. É a insegurança desse mundo que está permanentemente posta pela narrativa sinuosa imposta pela diretora, que nos instiga a descobrir quem além de nós está a ver tudo que vemos. Quem é o emissor das imagens? Essa confusão desafia nossa atenção e nos lança uma insidiosa interrogação durante todo o filme.
O fundamental em Ponto Oculto são os olhares múltiplos que alguma câmera está sempre captando, mesmo que eles sejam aparentemente furtivos. Logo nas primeiras cenas ficamos cientes pelas câmeras da filmagem alemã que há um carro seguindo Eyup (Aziz Çapkurt), um advogado curdo que defende os membros de sua comunidade contra as constantes perseguições do governo. Por isso, Ponto Oculto pode ser visto como uma poderosa narrativa contemporânea que expõe quais são os limites do uso de um sistema de vigilância e controle quando esses estão a servir os poderes constituídos, ou até mesmos os paralelos.
Ponto Oculto poderia ser apenas mais um filme de espionagem sobre traições rocambolescas e desconfianças recíprocas, mas felizmente Ayse Polat o concebe como uma narrativa crítica, instigante e criativa sobre como os aparatos tecnológicos podem ser apropriados para interesses privados e não coletivos. Pode parecer pouca a ambição de Ayse Polat, mas não é justamente porque ela demonstra saber manipular cinematograficamente os elementos que estão em suas mãos. Ao final, somos nós que ganhamos sendo provocados a pensar o mundo pelos diversos pontos de vista que o filme nos oferta.
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